Título: Esperando, esperando...
Autor: Penna, Maria Valéria Junho
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/02/2011, Opinião, p. 7

Desde que Inês Etienne saíra da Casa da Morte (centro de tortura de presos políticos durante a ditadura militar), em Petrópolis, e fora devolvida à família com o corpo e a alma despedaçados, sabíamos que Carlos Eduardo Soares de Freitas, Beto, ali estivera. Anos mais tarde, a revista "IstoÉ" publicaria uma reportagem sobre nossos desaparecidos. O retrato de Beto ali estava. Era claro que, experimentando o indizível que Inês experimentara, Beto não existia mais.

Conheci Beto nos anos 60, quando estudávamos na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, onde nos intervalos entre as aulas ele se encostava em uma pilastra e ritmava com uma caixa de fósforo, às vezes emprestada por Bolão, nosso porteiro e guardião da Rua Curitiba. Beto era alegre. Solar como mostram suas fotos. Gostava de música. Foi ele que nos levou a ouvir Bituca, um cantor novato que, como dizia, cantava com o som das ladainhas de Minas e a universalidade da humanidade. Bituca era Milton Nascimento.

Fomos apresentados a "Pedro Pedreiro", de Chico Buarque, por Beto, em uma noite de verão com cheiro de dama da noite, quando estávamos em uma mesa de bar na calçada do edifício Maleta. Ele, chegando de uma viagem misteriosa ao Rio, trazia uma música que o havia maravilhado e que ouvimos pela primeira vez, cantada por ele, sem violão, mas afinado. Humildemente, foi uma epifania.

Beto não foi à solenidade de formatura receber de D. Hélder Câmara o abraço de paraninfo. Mas apareceu no baile, em um clube à beira da Lagoa da Pampulha. Não ficou muito tempo, apenas o suficiente para dançar com as amigas. Tinha muitas: Ione, Herta, Celina, Eliane, Ciça... Era carinhoso, ouvinte atento, bom dançarino e solidário com o lado feminino de nossas infindáveis histórias amorosas. Dias depois, o convencemos a nos acompanhar a Le Chat Noir, onde dançou ao som dos Beatles e que, repetia, foi a sua grande experiência burguesa.

Durante um tempo, já depois da faculdade, escondeu-se na casa de um amigo cuja mãe que morava fora apareceu inesperadamente. Foi-lhe apresentado como marceneiro. Imediatamente a mãe encomendou prateleiras e, naquele instante, Beto se tornou marceneiro. Passou a gostar de madeira e trabalhos manuais.

Com Inês criou o Butcheko, o incrivelmente bem-sucedido bar da Política Operária (Polop). Lá bebia-se muito e conversava-se de tudo, mas principalmente de cinema novo e nouvelle-vague. Beto gostava de Glauber e de ¿Madre Joana dos Anjos¿. Eu gostava de ¿O Bravo Guerreiro¿, de Gustavo Dahl, que Beto não assistira, já que, quando mostrado em Belo Horizonte, já havia se mudado para o Rio, com o intuito sério de fazer sertão virar mar. Depois, vendo-o, concordou comigo: o filme de Gustavo Dahl era comovente, mas não existia mesmo solução ao personagem vivido por Paulo Cesar Pereio, depois de tantas grandes e pequenas traições cometidas. Mas insistia que era mórbido meu poster na sala, tendo o anti-herói com um revólver na boca.

No Rio, Beto vinha frequentemente à minha casa, às vezes sozinho, às vezes com Inês. Iam muito ao teatro nas matinês das tardes de quarta-feira. Nem a ditadura nem a luta armada tiravam deles a felicidade do cafezinho do bar da esquina, das tardes do Rio, dos amigos de Minas. Favor mesmo, só me pediu um: guardar uma mala por uns dias. Mais tarde, descobri que a mala fora muito importante na história da luta armada e que minha vida tranquila fora preservada pela resistência dele e de Inês em não me entregarem, nem mesmo na Casa da Morte. Nunca houve melhores amigos em face de tanta dor.

No final, antes que fosse preso, estive com Beto sucessivamente por três vezes. Na primeira, emprestei-lhe ¿Os conquistadores¿, de André Malraux. Antes de sair, cuidadosamente apagou meu nome e anotações do livro. Gostou do texto: como Garine, havia encontrado na ação coletiva um sentido para sua vida. Na segunda, vindo do Nordeste, trouxe-me uma escultura de Mestre Vitalino. Na terceira, encontrei-o numa tarde ensolarada na Praia do Leblon. Disse-me que seu nome naquela ocasião era Breno e que às vezes sentia o cerco apertar. Contou-me que estava apaixonado. Depois, nunca mais o vi. Mas como dói.

No final, é ¿Pedro Pedreiro¿ quem tem razão:

¿Assim pensando o tempo passa e a gente vai ficando prá trás.

Esperando, esperando, esperando, esperando... ¿

MARIA-VALÉRIA JUNHO PENNA é cientista política