Título: Os dois discursos de Obama
Autor: Marin, Denise Chrispim
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/03/2011, internacional, p. A10

A revoltas pegaram o mundo todo de surpresa; os americanos tomaram distância dos residentes déspotas, mas ainda afagam os reis que não são menos repressivos

Otan e ONU, EUA e União Europeia, França, Grã-Bretanha, todo o mundo reflete sobre o que é preciso fazer na Líbia no momento em que Muamar Kadafi lança uma contraofensiva. Essa reflexão não parece muito frutífera. Não surpreende: desde o início das revoltas árabes o Ocidente está confuso, assustado, e surpreso. Façamos um breve balanço das contorções do Ocidente.

Pela lógica, os países democráticos teriam de comemorar. Esses tumultos árabes não constituiriam uma homenagem ao Ocidente? Elas se inspiram (quer saibam ou não) nas Luzes, naquele século 18 que viu Montesquieu, Rousseau, Voltaire e os pais fundadores americanos afirmarem a soberania do povo, a separação dos poderes, a justiça e a igualdade, a tolerância - a democracia.

Mas o que se passou? Os países ocidentais, embora felicitassem os árabes da boca para fora, permaneceram inertes. Um país se distinguiu nesse campeonato de fingimentos, a França. Presa a suas amizades com os déspotas, zelosa de não perder seus mercados, a França, por intermédio de sua chanceler, chegou a oferecer ajuda ao presidente tunisiano para controlar a revolta na Tunísia. Essa vergonha manchará abjetamente a França por muito tempo.

Mas os outros países ocidentais também não foram muito mais brilhantes. Os britânicos são vendedores de armas e quem comprará mais armas que os tiranos? No ano passado, 50 fabricantes de armas britânicos participaram do Salão do Armamento líbio. Essas armas estão abatendo revoltosos líbios nas duas última semanas.

A Itália mantém relações calorosas com a Líbia. O premiê Silvio Berlusconi e Kadafi são companheiros. O "cachorro louco do deserto" ensinou a Berlusconi a delicada técnica da "bunga-bunga" que tanto agrada às jovens convidadas ao palácio do chefe do governo italiano. E a Líbia pesa na economia italiana por seu petróleo, suas participações em companhias italianas e as centenas de milhares de italianos que trabalham na Líbia. Outro temor da Itália: a "primavera árabe" poderia despejar nas praias italianas hordas de "bárbaros" da África.

E os EUA? O presidente Barack Obama sabe falar. Mas se nota que os EUA não têm o mesmo discurso com respeito aos presidentes déspotas (Ben Ali, Mubarak, Kadafi) e aos reis déspotas (do Golfo). Dos presidentes déspotas, os americanos tomaram distância, mas ainda afagam reis e príncipes.

O governo americano acaba de enviar diplomatas de peso ao Golfo para oferecer garantias aos soberanos que ali reinam. Obama e a secretária de Estado Hillary Clinton conversam com frequência por telefone com os reis árabes. Eles os aconselham. Por exemplo, pediram à Arábia Saudita para não prejudicar os esforços do rei Hamad para reformar o Bahrein, O fato é que o Bahrein abriga a 5.ª Frota da Marinha americana. A Casa Branca espera que a família real saudita, ajudada por suas enormes reservas financeiras, possa sobreviver a todas as revoluções. Exemplo: o rei Abdallah prometeu um subvenção extra de US$ 10 bilhões para ajudar os jovens sauditas a se casarem e se tornarem proprietários.

Fica a pergunta: os governos dos reis porventura serão menos repressivos que os governos despóticos dos presidentes Ben Ali, Mubarak e Kadafi? / TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

É CORRESPONDENTE EM PARIS