Título: Elefantes e humanos em conflitos
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Fonte: O Estado de São Paulo, 30/10/2011, Vida, p. A28

Todas as noites, após o jantar, milhares de agricultores no Sri Lanka pedem licença às suas famílias e se retiram de casa para dormir em cabanas de palha construídas no alto das árvores. Levam água, lanterna, um ou dois rojões e telefone celular. E não descem de lá até o amanhecer. Passam as noites meio acordados, meio dormindo, vigiando suas plantações contra o ataque de elefantes.

"Dos 12 meses do ano, acho que passo só 2 dormindo em casa, com minha família", conta A. G. Bandaranaike, plantador de arroz dos arredores de Sigiriya, na região central do Sri Lanka. "É uma pena, mas não temos outra opção. Nossas vidas dependem dessa produção." Se os elefantes vierem matar a fome com o seu arroz, sua família poderá não ter o que comer depois.

O conflito entre seres humanos e elefantes é um problema sério no Sri Lanka, uma ilha de 65,6 mil quilômetros quadrados, não muito maior do que a Paraíba, com 21 milhões de habitantes e mais de 5 mil elefantes selvagens. Cerca de 50 pessoas e 150 elefantes morrem em média todos os anos no país, vítimas de confrontos por espaço e alimento entre as duas espécies. Em 2010, esses números escalaram para 81 e 227, respectivamente.

Um conflito que Bandaranaike e seus vizinhos conhecem muito bem. Difícil achar alguém no interior do Sri Lanka que não tenha uma história de elefante para contar. Relatos de plantações invadidas, casas danificadas e até colisões no trânsito são comuns em várias vilas.

Franzino, mas energético, aparentando ter bem menos que os seus 43 anos, Bandaranaike relata de maneira teatral o enfrentamento que ele, o cunhado e mais dois amigos tiveram com um elefante alguns dias antes. Estavam afugentando dois elefantes de uma plantação vizinha quando Bandaranaike ouviu gritos alertando que havia um terceiro animal em sua terra. Todos correram para lá e Bandaranaike usou rojões para afugentar o bicho, que correu para a floresta, mas voltou de surpresa e os atacou.

Em meio ao corre-corre, o cunhado, Loku Banda, de quase 60 anos, caiu e foi chutado pelo elefante. Foi parar no hospital com um braço quebrado e um cotovelo deslocado. Pode-se dizer que deu sorte. Ataques como esse costumam ser fatais.

Os conflitos mais graves quase sempre envolvem machos solitários, bem mais agressivos que as fêmeas. A vida social dos elefantes no Sri Lanka é organizada em famílias de parentesco direto, regidas pelas fêmeas mais velhas. Os machos vivem em família até atingirem a maturidade sexual, por volta dos 10 a 15 anos. Depois, passam a viver por conta própria.

Na época da reprodução, seguindo uma regra quase universal do mundo animal, eles se enfrentam pelo direito de inseminar as fêmeas. É natural, portanto, que cada macho procure a melhor fonte de nutrição possível. "Para acasalar, você precisa ser grande e forte. E a única maneira de ser grande e forte é se alimentando bem", explica o pesquisador Prithiviraj Fernando, do Centro para Conservação e Pesquisa do Sri Lanka.

Infelizmente para os agricultores, não há nada numa floresta que se compare ao potencial energético de um arrozal, um bananal ou um canavial humano, cheio de plantas suculentas e supernutritivas num só lugar. "Os elefantes sabem disso e estão dispostos a correr riscos para obter essa refeição", diz Fernando. "É aí que os conflitos começam."

Um problema semelhante ao de pecuaristas e onças no Pantanal. Só que muito maior. E mais pesado.

"Para nós, o elefante é um animal magnífico, que precisa ser preservado. Para os agricultores, é como uma praga. Eles não querem matar os elefantes, mas querem uma solução", diz o consultor Srilal Miththapala, do setor de turismo do Sri Lanka, que estuda o conflito há vários anos.

Quando um animal causa problemas demais, os fazendeiros revidam com tiros, armadilhas, veneno ou até bombas caseiras, escondidas dentro de melancias - que explodem na boca do elefante ao serem mastigadas. Entre 1990 e 2009, cerca de 3 mil elefantes foram mortos nesses conflitos. Quase todos eles, machos.

Elefantes adultos precisam comer pelo menos 150 quilos de vegetação por dia. Razão pela qual passam 17 horas por dia se alimentando e precisam de áreas tão extensas para sobreviver. Com suas florestas e pastagens invadidas cada vez mais por cidades e fazendas, os conflitos se tornam inevitáveis.

"Daqui para frente só vai piorar", prevê a bióloga Manori Gunawardena. Com o fim da guerra civil que aterrorizou o país durante três décadas, em 2009, várias áreas agrícolas que estavam abandonadas - e foram ocupadas por elefantes nesse meio tempo - estão sendo retomadas por agricultores. "Eles vão começar a plantar, e os conflitos vão começar a acontecer", avisa Manori.

Paradoxo. Um dos ambientes favoritos dos elefantes são as florestas secundárias de "chena", ou coivara, nome dado à prática de agricultura com fogo, em que o produtor faz uma rotação de terras, deixando a mata crescer e queimando-a de tempos em tempos para fertilizar o solo. A vegetação dessas áreas é composta de plantas de vida curta e crescimento rápido, que são mais palatáveis para os elefantes.

Assim, ironicamente, ao desmatar florestas primárias e substituí-las por florestas secundárias, os agricultores favorecem a reprodução dos elefantes, fornecendo-lhes uma fonte abundante de alimento. Além disso, milhares de lagos artificiais espalhados pela ilha, construídos para irrigação, funcionam como oásis, mantendo os elefantes bem hidratados nos períodos de seca.

"É por isso que temos uma densidade tão grande de elefantes", diz o pesquisador Devaka Weerakoon, da Universidade de Colombo. "Se não fosse pela interferência humana, o número de animais seria bem menor."

O resultado é um cenário paradoxal, em que a ocupação de hábitats naturais ao mesmo tempo encurrala os elefantes e favorece a sua multiplicação, criando uma densidade populacional excessiva que só aumenta os conflitos e dificulta a conservação da espécie.

A solução padrão adotada nas últimas décadas foi a transferência de elefantes de áreas de conflito para parques nacionais, onde se imaginava que eles viveriam felizes para sempre. Mas não.

Mesmo com os parques cercados por cercas elétricas, a maioria dos machos escapa à força e volta à sua região de origem - às vezes caminhando centenas de quilômetros para isso. Os que não conseguem fugir (em geral fêmeas e jovens) permanecem próximos às cercas e sofrem com a escassez de alimento dentro dos parques, que muitas vezes não têm vegetação suficiente para sustentar tantos elefantes. No Parque Nacional de Yala, vários chegaram a morrer de fome, diz Weerakoon, mostrando fotos de elefantes esquálidos ao lado das cercas.

Estudos recentes mostram que os elefantes do Sri Lanka, diferentemente dos africanos, não são migratórios. Eles circulam por áreas relativamente pequenas (de 50 a 200 km2), às quais são intimamente ligados. Por isso não aceitam ser transferidos para outros locais.

Desde 2006, Fernando e sua mulher, a bióloga suíça Jenny Pastorini, acompanham via satélite os movimentos de 15 elefantes machos equipados com coleiras de GPS. Todos foram transferidos de zonas de conflito para parques nacionais, mas nenhum deles permaneceu lá. Todos escaparam.

Alguns conseguiram voltar para seu local de origem, outros se perderam e passaram a causar problemas em novas áreas. Resultado: cinco elefantes e seis pessoas mortas até agora.

Armistício. Um dos poucos lugares onde homens e elefantes conseguiram firmar um armistício é no entorno do Parque Nacional de Wasgamuwa. Ali, conservacionistas fizeram o oposto: em vez de cercar os elefantes, cercaram os seres humanos. Duas vilas vizinhas do parque, Pussellayaya e Weheragalagama, foram "revestidas" com cercas elétricas, impedindo a entrada dos animais.

Funcionou tão bem que os agricultores nem dormem mais em cima das árvores. Voltaram a dormir em casa, com suas famílias. E multiplicaram suas rendas, recuperando áreas de plantio que estavam abandonados por causa do conflito. "Dez anos atrás, isso aqui era uma guerra", conta Ravi Corea, presidente da Sociedade para Conservação da Vida Selvagem do Sri Lanka, responsável pelo projeto.

"Depois das 18 horas, ninguém mais escutava rádio. E orientávamos as crianças a não ler em voz alta, para não atrair os elefantes", conta o agricultor Athula Karmara, diretor do "comitê de manutenção e supervisão" da cerca de Weheragalagama. Agora, ele não só não atira mais nos elefantes como leva suas crianças para observar os animais na beira dos lagos onde eles bebem água nos finais de tarde. "É um passatempo familiar", diz. "Ambos agora estão protegidos, humanos e elefantes, cada um do seu lado da cerca."

Não muito longe dali, em Sigiriya, moradores continuam a viver com medo dos elefantes. O produtor de cebolas Karunaratne Banda mostra os galhos quebrados de uma árvore no fundo de sua casa, danificada por um elefante que avançara sobre ele algumas noites antes. "Tinha acabado de jantar, saí de casa e o elefante estava lá", conta. "Saí correndo, joguei a lanterna no chão e comecei a gritar. Foi o que meu pai me ensinou a fazer."

O animal parou para inspecionar a lanterna e desistiu do ataque. Banda e Bandaranaike acreditam que o elefante seja o mesmo macho que aterrorizou a região um ano atrás, matando oito pessoas. "O Departamento de Vida Selvagem o levou para longe, mas achamos que ele voltou", diz Banda.

A conversa está boa, mas o agricultor pede licença para se retirar. Já é fim de tarde. Hora de subir na árvore.

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