Título: Tsunami monetário
Autor: Duran, Camila Villard
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/10/2012, Economia, p. B2

As críticas do governo brasileiro ao fenômeno do "tsunami monetário" revelam um problema sensível, especialmente no pós-crise, quanto à gestão da moeda. Bancos centrais implementam sua política monetária com base em interesses nacionais e de acordo com mandatos legais. As consequências econômicas e sociais globais têm sido secundárias em seu processo decisório.

O Fed (o banco central dos EUA) tem como objetivo manter a estabilidade de preços e assegurar o pleno emprego naquele país. As rodadas de "afrouxamento quantitativo" monetário parecem estar condizentes com seu mandato, que pressupõe a arbitragem entre dois objetivos macroeconômicos. O problema é que o Fed também é responsável por gerir uma moeda de reserva e de pagamentos internacionais. Tanto ele quanto o Banco Central Europeu (BCE) têm papel global relevante, que não está refletido em mandatos internacionais.

O problema parece residir, portanto, na arquitetura do sistema financeiro internacional. A cooperação global monetário-financeira pauta-se por instrumentos jurídicos flexíveis. Esse modelo de regulação parece ser o resultado, como afirma o pesquisador Pierre H. Verdier, de dependência histórica. Desde o colapso do sistema de Bretton Woods, as relações monetárias e financeiras têm sido construídas juridicamente por meio de instrumentos de soft law. Com o fim do sistema de paridades fixas, na década de 1970, reguladores nacionais enfrentaram consideráveis desafios globais. Não havia moldura institucional para enfrentá-los ou autoridade capaz de criar fóruns formais de negociação ou acordos vinculantes. A atuação dessas autoridades passou, então, a pautar-se por redes informais, organizadas em torno de tecnocratas (como o Comitê da Basileia), e normas flexíveis como diretivas e recomendações.

Para o bem ou para o mal, esse modelo regulatório persiste: a atuação do G-20 é um reflexo. Esse regime, porém, não é o mesmo do direito do comércio internacional. A substituição do Gatt pela Organização Mundial do Comércio (OMC) deu novo impulso às relações internacionais nessa área. A OMC tem "dentes": conta, inclusive, com estrutura contenciosa. No sistema financeiro, porém, há fragmentação de centros de poder, e isso desfavorece a assunção por um ou outro banco central de suas responsabilidades internacionais na gestão da moeda. É o que ocorre, entre outros, com o Fed e o BCE.

A reforma do sistema financeiro internacional passa pelo questionamento dessa estrutura regulatória. E, apesar de ter dependência histórica, ela não é impossível. A construção do BCE é exemplo desse movimento. Desde a década de 1970, o Bundesbank praticava política monetária alemã com reflexos importantes no âmbito regional. Até 1990, os países europeus ainda poderiam recorrer a controles de entrada e saída de capitais, que, no entanto, vieram abaixo com a livre circulação. Esse período favoreceu, portanto, a intensificação do debate em torno da gestão comum da moeda, porque essa seria a única forma pela qual os demais países poderiam participar do exercício de poderes monetários.

No âmbito internacional, ainda é difícil imaginar a criação de uma união de compensações global, como idealizada por Keynes em 1941. Porém outros arranjos internacionais, intermediários a uma fase mais intensa de união financeira, poderiam ser colocados em debate. Bretton Woods nasceu da crença compartilhada por pensadores e políticos da época de que patologias econômicas (desemprego e inflação) haviam sido a causa da fragilidade das democracias. A demanda atual é por novo Bretton Woods que amplie a responsabilidade internacional de governos no âmbito monetário.

O diálogo iniciado com a tese do tsunami deveria servir de gatilho para uma reforma em que o Brasil assumiria posição relevante: a de integrar o quadro dos formuladores da arquitetura do sistema financeiro. No pós-crise, assegurar estabilidade econômica e política depende de inovadores arranjos institucionais internacionais.