Título: Das reservas ianomâmis para a Rua do Ouro
Autor: Torres, Sérgio
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2013, Economia, p. B8
Metal que vem das terras do grupo indígena, da Guiana e da Venezuela movimenta R$ 30 milhões por mês em Roraima
A valorização do ouro por causa da depreciação das moedas pela crise financeira global reativou em Roraima um mercado clandestino que movimenta quantias milionárias. Parte do ouro ingressa no Brasil ilegalmente pela despovoada fronteira com a Guiana. A Polícia Federal (PF) começou em 2012 investigações no Estado que já resultaram na prisão de 33 comerciantes, garimpeiros e contrabandistas. O cálculo ainda impreciso dos investigadores indica que o negócio movimenta pelo menos R$ 30 milhões ao mês em um Estado sem indústrias.
Praticamente desativada, a tradicional "Rua do Ouro" - como é conhecida a Araújo Filho, no centro da capital Boa Vista - renasceu, após fase de decadência que já durava dez anos.
Em três quarteirões, 15 lojas com letreiros, placas e vitrines compram pedras e pó de ouro trazidos da Guiana, da Venezuela e de garimpos em terras ianomâmis, em Roraima.
Com o aumento internacional do preço, a "Rua do Ouro" voltou a ser um ponto de compra e venda, sem nota fiscal, de ouro extraído nas nações vizinhas e em terras do Estado acessíveis apenas por aviões de pequeno porte ou após dias de navegação em rios margeados por florestas densas.
A crise mais que dobrou o preço do ouro na rua. Em 2010, a grama valia em torno de R$ 48.
Na primeira semana de dezembro, já custava R$ 101 no comércio de Boa Vista. No mercado formal, o valor da grama do ouro varia dia a dia, com picos recentes de até R$ 115.
Garimpos clandestinos. A recente operação da PF nas terras dos ianomâmis fechou 30 garimpos clandestinos. A Guiana passou a ser, então, a principal rota do ouro no extremo norte brasileiro.
Os garimpeiros vindos da ex-colônia inglesa entram no Brasil pelo município de Bonfim, na fronteira. Do outro lado do Rio Tacutu fica Lethem, cidade guianense.
Quando não atravessam a ponte que separa os dois países, passando obrigatoriamente pela fiscalização da aduana brasileira, os garimpeiros usam barcos pequenos para vencer os cerca de 50 metros entre as duas margens.
Há 15 anos em Roraima, os últimos três na chefia do Posto da Receita Federal na fronteira, o auditor fiscal Silvino Barreiros explica que nesta época aumenta muito a quantidade de garimpeiros vindos da Guiana.
São brasileiros que retornam para passar as festas de Natal e ano-novo com as famílias. "É muito grande o movimento de garimpeiros nesse período. Quase 100% dos homens que passam por aqui trabalham em garimpos. Pessoas de nível cultural e intelectual baixo, sem opções de emprego, para quem o garimpo é o grande sonho de ficar rico, Eles vão para lá (Guiana) iludidos e voltam desanimados. O garimpo não é brincadeira", disse Barreiros.
As apreensões de ouro no posto fronteiriço da Receita em Bonfim são poucas. O chefe do posto calcula algo entre quatro e cinco quilos nos últimos anos, em pó ou pedras. "Somos três auditores e dois policiais federais. A fronteira de Roraima com a Guiana tem 964 quilômetros."
Para os garimpeiros, é bem melhor vender o ouro no Brasil que na Guiana e na Venezuela. Aqui, o ouro clandestino vale mais e a repressão ao contrabando é menos efetiva.
O superintendente da PF em Roraima, Alexandre Saraiva, diz que comerciantes de ouro clandestino em Boa Vista e donos de garimpo em territórios indígenas faturavam R$ 1 milhão por mês antes da deflagração da Operação Xawara, em julho. Segundo ele, ainda não é possível avaliar a extensão do contrabando originário da Guiana. "Há mais garimpeiros brasileiros na Guiana do que na Venezuela. Os garimpos ficam próximos a Lethem, a cidade guianense na fronteira com o Brasil. Os garimpeiros vêm para cá também por uma questão logística. Boa Vista está a pouco mais de 100 quilômetros da fronteira. Georgetown (a capital da Guiana), a 500 quilômetros. Além do mais, boa parte dos garimpeiros de lá são brasileiros."
Pelos cálculos do superintendente, cerca de 300 garimpeiros e 30 balsas atuam na reserva, apesar da operação, que resultou na retirada de outros 300 garimpeiros e na apreensão de R$ 600 mil.
Ouro circula e está valorizado, admite comerciante
Estabelecido na "Rua do Ouro" há 33 de seus 86 anos de vida, o comerciante Raimundo Guimarães nega, no início da conversa com o repórter, comprar o ouro trazido pelos garimpeiros que, de loja em loja, buscam os melhores preços para as pedras extraídas na Guiana, na Venezuela e no interior de Roraima.
O dono da Guimarães Ouro, casa comercial no número 265 da mais famosa rua de Boa Vista reclama do governo, das restrições impostas pelas investigações da PF e até da presença de organizações não governamentais.
"Aqui mesmo, antes, eu comprava de 40 a 50 quilos de ouro por mês. Hoje não tem porque as ONGs não deixam. Cavar um buraco para tirar uma grama de ouro não pode, não dá. Então, o garimpeiro vai ser bandido", protesta Guimarães.
Com o desenrolar da entrevista o comerciante muda de tom e admite que o ouro circula e está bem valorizado. Diz que compra por até RS 101 o grama, mas só paga ao garimpeiro depois de fundir o metal e avaliar a pureza. "O ouro daqui vem com muita impureza agarrada." /s.t.