Título: PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 02/04/2005, O País, p. 4

As permanentes crises políticas em que o governo Lula se vê envolvido colocam em xeque nosso ¿presidencialismo de coalizão¿, expressão cunhada há 17 anos pelo cientista político Sérgio Abranches para definir o tipo de presidencialismo exercido no país.

Parece não haver dúvidas entre os estudiosos do assunto de que, para um presidente governar e ser bem-sucedido no Brasil, precisa montar uma coalizão majoritária, cuja base tem que ser partidária, não adiantando tentar comprar apoio no varejo, a cada votação.

Há quem afirme, como os cientistas políticos Fernando Limongi e Argelina Figueiredo, da USP, com base na medição do índice de fidelidade dessas coalizões na aprovação de projetos do governo, que o sistema é tão eficiente quanto um modelo parlamentarista.

Essa eficiência, embora contestada por alguns estudos, é geralmente aceita, mas existem algumas premissas para que ela se concretize, e aí entram as peculiaridades do governo petista e, sobretudo no último mês, o surgimento do novo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, para desconstruir as teses acadêmicas. Ou para confirmá-las pela negação.

Os estudos de Limongi e Argelina sobre dados de aprovação de projetos e de disciplina da base do governo mostram que o sistema de coalizão funcionou como no parlamentarismo até no governo Collor, e inclusive nos dois primeiros anos do governo Lula. Todos os governos, desde José Sarney, tiveram um índice de disciplina partidária acima de 90%, de apoio unânime das respectivas coalizões. Os índices de unanimidade de Lula foram de 96,7% no primeiro ano e 90,2% no segundo ano.

Já o cientista político da Fundação Getulio Vargas Octávio Amorim Netto sustenta que só FH governou como um primeiro-ministro. Segundo ele, pode-se afirmar que um governo multipartidário, em um regime presidencialista, assemelha-se aos gabinetes de coalizão formados nos sistemas parlamentaristas quando o presidente obedece às seguintes normas: usa um critério eminentemente partidário de seleção dos ministros; aloca os ministérios aos partidos em bases proporcionais ao seu peso dentro da maioria legislativa do governo; usa mais projetos de lei do que medidas provisórias; e dá poder de veto aos seus parceiros de coalizão sobre os projetos a serem apreciados pelo Congresso.

Estaria o governo Lula obedecendo a esses critérios? A gula do PT para assumir o controle do governo, descendo até aos estados e municípios, e o uso indiscriminado das medidas provisórias, são duas questões centrais para se entender por que o governo Lula tem tanta dificuldade para montar coalizões.

O cientista político Amaury de Souza salienta que a estratégia de construção do governo de coalizão por parte de Fernando Henrique foi verdadeiramente inovadora, usando os poderes presidenciais para formar um ¿presidencialismo de coalizão racional¿, em contraste com o sistema que vinha sendo utilizado de 1946 a 1964, de um ¿presidencialismo de facções¿, que consistia em atrair para o governo apenas partes dos partidos oposicionistas, dificultando-lhes assim a ação.

Segundo Souza, ele recrutou sua base congressual fazendo ministros partidários, e formando seu Ministério proporcionalmente ao peso partidário no Legislativo. Também usou as medidas provisórias e o controle sobre o orçamento garantido pela Constituição de 1988 para manter sua maioria legislativa. O cientista político Sérgio Abranches diz que a coalizão do governo Lula é instável porque a maioria que a compõe é de partidos de corte tradicional, pragmático, clientelista, que não tem qualquer afinidade com o projeto político do PT e, ¿mais ainda, são caçados pelo PT nas suas bases¿.

Ele lembra que o PT cresce atualmente não mais nas regiões metropolitanas, onde cresceu com o sindicalismo, mas no interior, junto com o movimento social, e ¿o crescimento dele depende da destruição das oligarquias, do desalojamento das oligarquias do poder. Isso cria uma contradição de interesses político-eleitorais praticamente intransponível¿.

Para Abranches, ¿Lula nunca montou um governo de coalizão, que pressupõe, menos que a partilha de cargos, a partilha de poder. Respeitar o território dos aliados, e o PT e o governo nunca respeitaram esses limites¿.

Ele exemplifica a situação lembrando que o tema mais importante para os partidos aliados sempre foi ¿não o Ministério, mas a verticalização¿, isto é, chegar nos cargos federais nos estados, ¿que são as pontas de contatos com os cabos eleitorais, onde você monta a estrutura de comando eleitoral¿.

Além do mais, Abranches diz que Lula faz um governo ¿que fere a regra da proporcionalidade, importante na cultura da coalizão. É a proporcionalidade que faz com que se aceite que um partido maior tenha mais ministérios, ou tenha mais relatores, presidentes das comissões. Tudo na cultura partidária brasileira é proporcional, e vai o Lula e dá dois ministérios para o PCdoB, que é um pequeno partido, e deixa de fora o PMDB¿, ressalta.

Sérgio Abranches lembra que também na distribuição de recursos o governo petista é desproporcional: ¿a principal reclamação dos aliados não é do contingenciamento das verbas, mas sim de que quando o governo abre a torneirinha, abre de forma desproporcional para os aliados que eles consideram mais merecedores¿. (Continua amanhã)