Título: UM CENTRO DE FORMIDÁVEIS NEGÓCIOS SUSPEITOS
Autor: A. C. SCARTEZINI
Fonte: O Globo, 11/05/2005, Opinião, p. 7

Ao cassarem o mandato e os direitos políticos do colega fluminense André Luiz, os deputados não pretenderam corrigir, na quarta-feira (4/5), a decisão da mesa da Câmara, que, na véspera, livrou a cara do pernambucano Pedro Corrêa ao arquivar o pedido de sindicância sobre sua ligação com a máfia dos combustíveis e dos cigarros.

O sacrifício de André Luiz representou a oportunidade para a Câmara salvar as aparências, desfazer a má impressão causada pela absolvição de Corrêa com dispensa a sindicância prévia. Num dia, absolveu-se um para em seguida resgatar a imagem parlamentar com a condenação do outro. Caso pensado, tramado e executado.

Na linguagem interna não-escrita e muito menos discursada, a decisão de terça-feira transmitiu uma senha: o deputado continua entre nós, mas o outro teremos de mandar embora. Afinal, iriam desafiar a opinião externa, estruturada sob novo modelo de pressão, com duas absolvições seguidas?

Entendia-se na senha que, para efeito externo, a punição de quarta-feira seria um resgate da moral - e do moral -- parlamentar abalada na véspera, mas sem qualquer vestígio de catarse, arrependimento, consciência pesada ou mea-culpa. Era mesmo caso pensado, e não um impulso.

O caso é que Corrêa foi um boi de piranha ao contrário. Atravessou o rio na frente para abrir caminho ao ataque ao colega André Luiz que vinha atrás, em posição mais vulnerável.

Um não tinha sequer partido que o defendesse. O outro, presidente do PP de Severino Cavalcanti e Paulo Maluf.

Assim caminha a vida parlamentar, com seu sistema de freios e contrapesos dotado de uma lógica, oportuna e conveniente, na expectativa de que, agora, essa dinâmica particular de convivência entre pares estabilize a situação doméstica, livre de cobranças públicas, pelo menos até a próxima trombada com a opinião externa.

A confiança na estabilidade pós-André Luiz permitiu ao deputado Ronivon Santiago, do mesmo PP, acompanhar com desembaraço o desfecho do processo do então colega e, inclusive, colaborar com seu voto secreto na decisão da Câmara.

É apreciável a ironia em volta da expressão "então colega". Deixaram de ser colegas porque um se foi e o outro ficou. Ambos, na verdade, deveriam continuar colegas, pois o mandato de Ronivon ronda a ficção desde que, há quase um ano, a Justiça Eleitoral o cassou por compra de voto na eleição no Acre. Mas a mesa que absolveu Corrêa também não despeja Ronivon.

E ambos continuam a pairar pela ópera, mais protagonistas que fantasmas. A presença do surreal surge como uma vocação de destino na vida de Ronivon Santiago, a começar pelo nome real com que preenche os documentos civis: José Edmar Santiago de Melo. José Edmar? Sim, e daí?

E daí que a dimensão surreal é uma constante ao seu redor, mas José Edmar resiste à condição de fantasma parlamentar. Em maio de 1997, renunciou ao mandato por temer a cassação pelos colegas diante da acusação de vender por R$200 mil seu voto a favor da emenda que permitiu a reeleição do presidente Fernando Henrique - antes, ele vendia, depois comprava. Saltou sobre as urnas de 1998. Retornou em 2002 sob o mesmo estigma de perda de mandato, e vai ficando.

Assegura a permanência de um modo simples. Não se defende perante o público, nem acusa. Confia no espírito cordial dos deputados e dispensa-se de represálias, veladas ou ostensivas, a quem o perseguir. No fim, dá certo. Se deu certo com Ronivon, por que seria diferente com Pedro Corrêa na era severina?

A diferença de estilo vai para a conta da solidão em que André Luiz se colocou pela falta de habilidade e de apoio na construção de rede de segurança pessoal. E ainda saiu rosnando contra colegas. Ao deixar a sessão na qual foi cassado pela tentativa de extorsão de Carlos Cachoeira, resmungou que outros deputados fizeram a mesma coisa contra o mesmo empresário de jogos e estão impunes.

A tentativa de generalização, subentendida no resmungo a possibilidade de denunciar outros pelo mesmo crime, lembra o caso do goiano Maguito Vilela no Senado. Quem se lembra de que o senador foi à tribuna dizer que não é rara a compra ou tentativa de compra de votos no Congresso por empreiteiros? Ocorreu há pouco mais de dois meses, quando Maguito vivia a ansiedade do possível acesso à Esplanada dos Ministérios na cota do PMDB.

Na época, a oposição ameaçava o presidente Lula com a abertura de uma CPI para apurar se ele acoberta irregularidades do governo anterior, como deu a entender em discurso no interior do Espírito Santo - hoje em dia, não há mais aquele interior do território nacional onde era possível dizer coisas que não chegavam ao centro do país, graças aos novos meios de comunicação que reformulam também os canais de pressão da sociedade civil.

Na tribuna, em defesa do Planalto, o senador dizia que a compra - ou a tentativa de compra - de parlamentares para a retirada de assinaturas em requerimentos de convocação de CPIs ocorria no próprio café do Senado, uma espécie de extensão do plenário. Pressionado a mencionar nomes, Maguito alegou não ser "obrigado a saber nome de empreiteiro que fica no cafezinho tentando comprar senador e deputado".

Não se falou mais disso, mas fica na opinião nacional a imagem reforçada de Brasília como um centro dinâmico de formidáveis negócios suspeitos, com a mesma aura que tornou a cidade sinônimo de ilha da fantasia, graças a homens públicos que os estados exportam para o Planalto como representantes da nação consagrados pelo voto popular. É o preço que pagam pela convivência os brasilienses apenas cidadãos.

A. C. SCARTEZINI é jornalista.

Desde 1997 José Edmar, o Ronivon Santiago, vaga como um fantasma parlamentar