Título: Na Região dos Lagos, a única caatinga litorânea
Autor: Tulio Brandão
Fonte: O Globo, 05/06/2005, Rio, p. 18

Clima típico de sertão explica cactos e galhos retorcidos

A chuva tem média de parcos 800 milímetros anuais, a mesma dos sertões. O vento nordeste sopra inclemente durante 80% do ano. O solo, pobre e sem nutrientes, é alvo constante da especulação imobiliária. Pois nesse ambiente quase inóspito, encontrado apenas em trechos de municípios da Região dos Lagos, ocorre uma das vegetações mais ricas do mundo. É uma diversidade tão singular que os especialistas até hoje não chegaram a um consenso para classificar o ecossistema. E, não por acaso, enquanto não surge uma nova denominação, o IBGE chama a vegetação de estepe arbórea aberta, também conhecida como caatinga fluminense.

Região abriga espécie de cacto única no mundo

Nessas terras, espalhadas por Iguaba Grande, São Pedro da Aldeia, Cabo Frio, Arraial do Cabo e Búzios, o sertão encontrou o mar. A botânica Heloísa Dantas, que escreveu tese de doutorado sobre a vegetação, explica que o clima seco na região cria a única caatinga litorânea do país:

¿ Ali o regime de chuvas é semelhante ao do sertão por vários fatores. Há uma quebra na linha litorânea do continente naquela parte da costa, o que restringe a chegada de frentes frias. É uma área especialmente afastada da Serra do Mar, onde há concentração de umidade. E, ainda, está sob a influência do fenômeno da ressurgência (corrente marinha de água fria), que reduz a evaporação da água, e por conseqüência, a formação de nuvens.

Com tantas particularidades e obstáculos, surgiu uma vegetação singular, de galhos retorcidos, espinhos e copas baixas. Entre diversas preciosidades, a vegetação abriga mais de 20 espécies de orquídeas endêmicas (só encontradas na região), raras e ameaçadas de extinção. Um cacto conhecido como cabeça-branca (Pilosocereus ulei), que atinge a altura média de sete metros, está restrito, no mundo, àquela área. O valor da vegetação foi recentemente reconhecido pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) como Centro de Diversidade Vegetal, título dado a raros pontos do mundo com alto grau de endemismo, espécies raras e ameaçadas.

Repórteres do GLOBO, em viagem semana passada à Região dos Lagos, conheceram as belezas da caatinga fluminense. Em Arraial do Cabo, a paisagem é repleta de cactos gigantes, arbustos retorcidos e pequenas flores. Picos como o Pontal do Atalaia e o Morro do Forno, em Arraial, resistem ao avanço iminente da ocupação irregular. E há quem use a vegetação de modo sustentável. Numa terra onde grande parte do povo vive do mar, o pescador Edvaldo de Souza, de 42 anos, fala das riquezas daquela mata:

¿ Comemos o fruto do cacto, chamado de cardo. A aroeira serve para curar ferida e sua casca, para tingir rede de pesca.

A mata também atraiu o biólogo David Aguiar, da Secretaria de Meio Ambiente de Arraial, que preferiu a vegetação à riqueza marinha da região. Ele concorda com a semelhança com a caatinga nordestina e aponta plantas das mesmas família e gênero nos dois ecossistemas:

¿ Entre as famílias, as de cactos (cactaceae) e de bromélias (bromeliaceae) são as principais. Nos gêneros, também há vários. O Cereus sp, por exemplo, é cacto aqui e xique-xique lá, o Pseudobombax sp é paina aqui e lá, barriguda, a Capparis sp é feijão-bravo lá e, para nós, feijão-de-porco. E por aí vai.

David, no entanto, teme pela preservação da vegetação. Ele explica que o solo é pobre e, quando degradado, tende à desertificação. Numa área antes preservada no alto do Morro da Cabocla, um senhor abriu uma clareira para criar porcos. Valter de Souza, de 63 anos, chegou a Arraial atraído pela construção civil e hoje sobrevive dos suínos.

¿ Eu moro sozinho. O governo às vezes vem aqui e manda eu não tirar nada. Quando melhorar, vou plantar uns verdes para voltar a mata, né? ¿ diz ele, que mora sozinho num barraco de madeira.

Árvores se entrelaçam para resistir à baixa umidade

Em Búzios, onde também há sinais da caatinga fluminense, a degradação vem de casas mais abastadas. Costões e topos de morro onde antes havia a vegetação estão invadidos por casas de veraneio, ainda que um estudo do Ibama, de 1992, recomendasse a transformação das manchas de estepe arbórea aberta em áreas de preservação permanente. Mas, como em Arraial, ainda há o que preservar.

¿ É uma vegetação simbólica, rara. As árvores, com galhos retorcidos, se entrelaçam para resistir às difíceis condições climáticas e formam um verdadeiro bonsai, uma relíquia ¿ diz o ambientalista Gabriel Gialluisi.

As vegetações de entorno das praias de Geribá, João Fernandes e Ferradura já estão comprometidas. Agora, o impacto ambiental pode chegar à Praia Azeda, um símbolo das matas secas de Búzios. Está em processo de licenciamento a construção de um condomínio de casas no terreno da praia.