Título: Violência impede acordo
Autor: Janaina Figueiredo/Flávio Henrique/Eliane Oliveira
Fonte: O Globo, 10/06/2005, O Mundo, p. 30

Protestos impossibilitam reunião do Congresso em Sucre. Mineiro morre em confronto

Quatro dias depois de o presidente da Bolívia, Carlos Mesa, enviar seu pedido de renúncia ao Congresso, fracassou ontem a tentativa de realizar na cidade de Sucre uma sessão para designar um novo presidente. A sessão fora convocada pelo presidente do Congresso, senador Hormando Vaca Díez, mas a acirrada disputa pelo poder e, sobretudo, as violentas manifestações que ontem alteraram a vida dos moradores da capital constitucional do país impediram que os 157 congressistas se reunissem.

Na pequena cidade de Yotala, a 30 quilômetros de Sucre, um mineiro morreu e três ficaram feridos em choques entre manifestantes e militares. Trata-se da primeira morte provocada pela grave crise política que, segundo admitiu o presidente Mesa, deixa o país à beira de uma guerra civil.

O governo do Brasil já tem um plano para resgatar brasileiros, caso se agrave a situação na Bolívia, onde faltam produtos de primeira necessidade - como combustíveis e alimentos - e os protestos têm sido diários e violentos. Por enquanto, porém, a posição é observar o desenrolar da crise.

- Estamos pensando nisso (retirada de brasileiros), mas essa possibilidade está sendo avaliada com cautela - disse o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim.

Segundo a Embaixada do Brasil na Bolívia, cerca de dez mil brasileiros vivem no país. Na época da queda do presidente Gonzalo Sanchezde Lozada - substituído por Mesa - o Itamaraty resgatou 60 turistas.

Brasil e Argentina enviam missão

Outra preocupação do governo brasileiro é o abastecimento de gás. Segundo Amorim, o Brasil deseja continuar a participar da exploração do produto, a despeito da possível nacionalização do setor, reivindicada por movimentos sociais.

- É preciso levar em conta a economia real. Temos interesse no gás deles, embora tenhamos outras reservas, mas eles também têm interesse em vender o produto para nós - disse o chanceler.

Numa tentativa de ajudar a encontrar uma saída para a crise, Brasil e Argentina enviaram ontem à Bolívia uma missão diplomática, encabeçada por Marco Aurélio Garcia, assessor para assuntos internacionais do governo brasileiro, e Raúl Arconada Sempé, representante argentino. Eles chegaram a Santa Cruz de la Sierra num avião da Força Aérea Brasileira e se reuniram com o cardeal Julio Terrazas, convidado por Mesa para mediar a crise. Porém, nenhuma proposta veio à tona, além da que foi endossada pela Igreja Católica, de antecipação das eleições. Marco Aurélio tentou ir a Sucre mas teve que voltar a Santa Cruz porque centenas de manifestantes ocuparam o aeroporto com explosivos.

- Chegamos a desembarcar em Sucre, mas quando estávamos na sala de espera começamos a ouvir explosões e os seguranças recomendaram que retornássemos a Santa Cruz - disse ele.

Segundo o enviado brasileiro, "a situação é muito delicada e qualquer opinião poderia ser precipitada".

A situação em Sucre era caótica. Segundo congressistas que chegaram à cidade para a sessão convocada terça-feira por Vaca Díez, o clima era de profundo temor, devido às violentas manifestações.

- Estamos atemorizados. Muitos tentaram sair da cidade mas não conseguiram, porque o aeroporto foi ocupado pelos manifestantes. Estamos todos refugiados em hotéis porque sabemos que nossas vidas correm perigo - comentou um deputado do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), principal partido de direita, que pediu para não ser identificado.

O deputado e líder cocaleiro Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), voltou a denunciar uma tentativa de golpe de Estado que estaria sendo orquestrada por partidos de direita e pelo governo dos EUA, que defendem a entrega da Presidência a Vaca Díez, primeiro na linha de sucessão. Mas todos os movimentos sociais consideram que ele não tem credibilidade para governar. O líder cocaleiro insiste em que a liderança do país seja dada ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Eduardo Rodríguez.

As Forças Armadas descartaram a possibilidade de uma guerra civil mas disseram manter estado de alerta máximo.

- Existe o risco de confronto entre bolivianos, mas guerra civil é um termo muito duro que significa violência extrema e uso de armamento. E e isso não vai ocorrer - afirmou o comandante das Forças Armadas, almirante Luis Alberto Aranda.

BOXE EXPLICATIVO

> Temas polêmicos que dividem o país

GÁS NATURAL: A Bolívia tem a segunda maior reserva de gás natural da América Latina, um volume total de 1,5 trilhão de metros cúbicos. No país mais pobre da região, os manifestantes pedem a nacionalização das reservas na esperança de que essa riqueza possa melhorar suas vidas.

LEI DE ENERGIA: O Congresso aprovou em maio uma lei de hidrocarbonetos que estipula um imposto de 32%, além dos 18% de royalties. A lei aumentou o controle estatal, mas não atendeu às exigências de nacionalização total.

INVESTIMENTO ESTRANGEIRO: Doze empresas estrangeiras, incluindo a Petrobras, investiram US$3,5 bilhões na exploração do gás boliviano desde 1997. Com a nova lei, muitas empresas dizem que reduzirão seus investimentos e algumas ameaçam levar o país à Justiça por quebra de contrato.

PODER INDÍGENA: Os índios Aymara, Quéchua e Guarani representam 65% da população de 9 milhões de habitantes. Sua influência política cresceu nos últimos anos. Eles são favoráveis à nacionalização das reservas de gás. O líder indígena Evo Morales ambiciona se tornar o próximo presidente, defendendo uma maior representação política dos indígenas.

AUTONOMIA REGIONAL: A elite de descendência européia das províncias ricas do leste do país - que abrigam a maior parte das reservas de gás e petróleo - lideram um movimento de autonomia que enfureceu os indígenas do oeste. O Congresso concordou em promover a autonomia das nove províncias. Como não houve progressos, o movimento pela autonomia na província mais rica, a de Santa Cruz, marcou um referendo para 12 de agosto.

*Correspondente e **enviado especial

www.oglobo.com.br/mundo