Título: Armadilhas da realidade
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 21/10/2004, O país, p. 4

O governo petista está novamente enredado nas armadilhas políticas que o Partido dos Trabalhadores foi deixando pelo caminho nos últimos 20 anos, com uma postura de radicalização que só é possível nos palanques oposicionistas, não tem viabilidade na vida real. As ¿bravatas¿ já admitidas geraram contradições políticas imensas, e já foram abordadas aqui várias vezes, especialmente as alianças heterogêneas abarcando um arco tão eclético que vai do PCdoB a Maluf, numa real politik exacerbada.

Apenas para citar algumas das incoerências, o PT sempre usou o Ministério Público para fazer suas denúncias, e hoje o demoniza. Sempre foi contra o foro privilegiado para autoridades governamentais, mas apressou-se a dar status de ministro ao presidente do Banco Central para protegê-lo de possíveis processos. Mas é no campo social, no entanto, que as promessas feitas durante tanto tempo não têm resposta na realidade.

Ineficiência administrativa e bravatas também nesse campo se tornam a cada dia mais evidentes, impedindo que o governo consiga êxito onde parecia mais talhado a obtê-los. Como, por exemplo, no combate à corrupção. Passados quase dois anos de seu mandato, Lula agora criou mais um conselho, o de Transparência Pública e Combate à Corrupção.

Ainda candidato, mas com toda pinta de vencedor, proferiu a seguinte frase em julho de 2002, durante a campanha presidencial: ¿Se ganharmos a eleição, tenho certeza de que parte da corrupção irá desaparecer já no primeiro semestre¿.

O chefe da Casa Civil, José Dirceu, por seu turno, depois do episódio Waldomiro Diniz ¿ que, aliás, aconteceu no início de 2004, isto é, bem depois do primeiro semestre de governo ¿ cunhou um mantra, que repete sem parar como se com isso conseguisse transformar a realidade: ¿Este é um governo que não rouba nem deixa roubar¿.

Aí, vem a Transparência Internacional, uma ONG que já foi muito usada pelo PT como fonte de denúncias em tempos idos, e solta um relatório dizendo que a percepção de empresários e analistas sobre a corrupção no Brasil não mudou neste segundo ano do governo Lula.

O Índice de Percepção de Corrupção deste ano, que inclui 146 países, coloca o Brasil na 59 posição, com 3,9 pontos numa escala que vai de 1 a 10 pontos. Quanto mais baixa a pontuação, maior a corrupção percebida no país.

O desempenho brasileiro ficou um pouco acima da média da América Latina, de 3,5 pontos, mas abaixo de países como o Chile (20 ), com 7,4; o Uruguai (28 ), com 6,2; a Costa Rica (41 ), com 4,9. E muito longe da Finlândia, com uma pontuação de 9,7. Estamos no mesmo patamar, vistos como país com grau alto de corrupção, há sete anos.

Já contei aqui, mas vale a pena repetir, um desabafo do presidente, ainda em seu primeiro ano de governo. Deixando o Palácio do Planalto depois de mais um dia de trabalho, um assessor virou-se para ele e comentou: ¿Mais um dia ganho honestamente¿. O presidente, com um sorriso, replicou: ¿Eu, sim. Os outros, não sei¿. Comentário melancólico, que as fraudes no Bolsa Família, o grande programa social do governo, só fazem justificar.

Mas, muito além da incapacidade de fiscalizar um programa megalômano como esse, que mais parece montado por um marqueteiro ¿ há quem garanta que nele estão as digitais de Duda Mendonça ¿ existe uma questão política de escolha da metodologia para definir quem será abrangido pelo Bolsa Família.

Durante anos a fio, auxiliado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o PT fez campanha contra a fome denunciando que tínhamos milhões de famintos, chegando a 50 milhões durante a campanha presidencial. Escolhia um número redondo, escandaloso, de cuja autenticidade o próprio Lula desconfia, e já revelou isso a muita gente.

Mas continuou a usá-lo, pois era um número que dava mais apelo político à denúncia. Os números oficiais, no entanto, são os mais contraditórios entre si, assim como os critérios para definir quem é pobre e indigente no Brasil. Segundo a Fundação Getulio Vargas, hoje, são 47,4 milhões apenas os miseráveis, sem contar os simplesmente pobres.

O Ipea, um instituto de pesquisas ligado ao Ministério do Planejamento, sustenta que temos hoje 57,9 milhões na linha da pobreza (quem ganha menos que R$ 146 por mês), e que, desses 24,6 milhões são realmente indigentes (vivem com menos de R$ 73 por mês). De fato, somos um país pobre. Ou um país rico, mas injusto na distribuição de renda. Mas nem todo pobre passa fome.

Mas, para lançar o Fome Zero, o número mágico voltou à cena, talvez para dar maior dimensão ao programa, e a meta é atender 54 milhões de pessoas que ganham até R$ 100. Como a definição do governo para pobres e miseráveis está congelada na lei em valores monetários, a cada ano o governo terá menos capacidade de atender à população que definiu como necessitada do Bolsa Família, ficando preso em sua própria armadilha populista.

Se adotasse o critério do Ipea, e decidisse atender apenas aos definidos como indigentes, os que realmente passam fome, a meta seria reduzida pela metade e o projeto teria muito mais viabilidade.