Título: O desafio da reconciliação
Autor: Flávio Henrique Lino e Cristiane Jungblut
Fonte: O Globo, 11/06/2005, O Mundo, p. 31

Novo presidente obtém trégua de setores insatisfeitos e pede união a bolivianos

Uma trégua sob ameaça. Foi essa a situação encontrada pelo novo presidente da Bolívia, Eduardo Rodríguez, ao dar partida ontem à árdua tarefa de pôr em paz um país polarizado e convulsionado nas últimas três semanas por manifestações e choques que muitos viam como um prelúdio de guerra civil. Com os primeiros sinais de retorno à normalidade - como um tímido reinício do reabastecimento de La Paz e outras cidades - Rodríguez teve a certeza de que suas primeiras dores de cabeça não estão longe.

Em El Alto, a poderosa Federação de Associações de Moradores (Fejuve) manteve os bloqueios e deu ao novo presidente apenas 72 horas para nacionalizar o gás e o petróleo, a principal reivindicação dos movimentos populares. A cidade controla as ligações terrestres de La Paz com boa parte do país.

O novo presidente se reuniu por uma hora com seu antecessor, Carlos Mesa, e começou as gestões para tentar superar o impasse em El Alto. À noite anunciou-se que ele enviou cartas aos dirigentes da Fejuve pedindo um encontro hoje. Em seu curto discurso de posse, na noite anterior, Rodríguez já dera o tom de reconciliação que deverá dominar seu governo provisório:

- Peço e insisto aos bolivianos que estão em situação difícil, que estão protestando, que estão pedindo e insistindo em mudanças, que trabalhemos juntos para alcançá-las - disse.

Bloqueios em estradas são levantados

A Fejuve ficou isolada depois do cessar-fogo estabelecido pela maior parte das forças que pressionavam o governo Mesa, a fim de dar a Rodríguez tempo para se instalar e tocar sua agenda. Sobre ela, o presidente já avisou que vai trabalhar com o Congresso pela nacionalização do petróleo e do gás e pela convocação da Assembléia Constituinte e do referendo de autonomia dos departamentos, principais temas que dividem o país. Haverá eleições para presidente e vice em até cinco meses.

- É preciso entender que é um presidente novo e que tem vontade de atender às nossas demandas. Sua eleição reduz a tensão e vamos aceitar uma trégua - concedeu o deputado e líder cocaleiro Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), responsável por boa parte dos bloqueios nas estradas.

Já o gerente-geral do Comitê Cívico de Santa Cruz, que lidera o movimento autonomista dos departamentos, disse ao GLOBO:

- Teremos de ver os passos e decisões tanto do presidente como do Congresso.

Com Mesa fora do poder, muitos dos mais de 80 bloqueios nas estradas foram levantados. Em La Paz, bancos e comércio reabriram as portas e motoristas suspenderam a greve. O aeroporto de El Alto voltou a receber vôos após o fim da greve dos controladores de vôo. Os cordões de isolamento da polícia em torno do Palácio Quemado e do Congresso foram retirados.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou uma mensagem ao novo presidente da Bolívia, desejando-lhe, em nome do povo brasileiro, "felicidade e êxito". Lula elogiou o fato de que, após semanas de protestos, líderes bolivianos tenham sabido "chegar a uma fórmula de consenso para a sucessão presidencial". Ele e Rodríguez deverão se encontrar semana que vem, no Paraguai, numa reunião do Mercosul. Recém-chegado da Bolívia, o assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia, disse à noite que a Bolívia esteve à beira de uma guerra civil e que houve maturidade em torno da escolha do novo presidente.

- O que choca hoje é a incerteza. A tarefa do novo presidente é superar a crise política - disse Marco Aurélio.

Rejeição aos políticos

Líder sem carreira nas urnas

LA PAZ. Até o fim da noite de anteontem, os bolivianos já tinham visto passar pela cadeira presidencial 68 homens desde a Independência em 1825. Muitos deles generais - resultado dos mais de 200 golpes de Estado que o país testemunhou em sua turbulenta vida política - e alguns civis provenientes dos partidos tradicionais. Eduardo Rodríguez Veltzé, no entanto, é o primeiro presidente da Corte Suprema de Justiça a chegar ao posto.

E não foi por acaso que um juiz - o terceiro na linha sucessória - atropelou os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados para tornar-se o nome de consenso como saída do impasse causado pela rejeição popular ao senador Hormando Vaca Díez e ao deputado Mario Cossío. Esmagada pelo peso de um índice de pobreza que atinge 58% dos bolivianos, boa parte da população perdeu a confiança nos políticos tradicionais.

Com isso, ganhou força o impecável currículo desse advogado de 49 anos, casado, quatro filhos e com mestrado em administração na Universidade de Harvard, nos EUA. Desde 1999 na Corte Suprema, fez toda a sua carreira longe das urnas.

- Não queremos mais ditadores nem esses políticos que já nos causaram tanto dano. Não queríamos que entrassem novamente os grandes partidos. Foram eles que nos destruíram e por causa deles é que estamos aqui - disse ao GLOBO Victor Apaza, membro da Federação das Associações de Moradores de El Alto, num dos bloqueios na cidade. - Por isso o apoiamos.

A rejeição aos políticos se manifesta de várias formas. Num recente protesto em La Paz, uma jovem militante incitava a multidão puxando de um carro de som um refrão que xingava deputados e senadores, para delírio dos manifestantes. Anteontem, 35 grupos de greve de fome se formaram em La Paz para pressionar Vaca Díez e Cossío a renunciarem e abrirem caminho para Rodríguez assumir a Presidência.

Para vários analistas, os movimentos populares estão descobrindo novas formas de atuação fora dos canais de representação política. Segundo o sociólogo Carlos Crespo, desde 2000 esses grupos vêm atuando na forma de uma rede "articulada em torno de objetivos comuns de resistência aos poderes políticos dominantes". Anteontem, essa rede levou um juiz à Presidência. (Flávio Henrique Lino)

*Enviado especial