Título: PARA QUE SERVE A CONSPIRAÇÃO?
Autor: Roberto daMatta
Fonte: O Globo, 29/06/2005, Opinião, p. 7

Ésomente agora, nesses tempos de estabilidade monetária e certamente por isso mesmo, que a conspiração tem perdido a força nos debates políticos.

A conspiração veicula uma trama não transparente, propriedade de uns poucos donos do poder ¿ os que ¿sabem das coisas¿, para explicar dramas complexos, regidos por muitos interesses. Trata-se sempre da versão que nós, o povo idiota, não temos acesso, pois continuamos a ingenuamente acreditar no poder trivial da retidão e do bom senso.

A sua marca registrada é a informação secreta e oculta do público o que, numa sociedade de viés autoritário como o Brasil, dá-lhe foros de um grau último de verdade: o da ¿verdade verdadeira¿.

Em meio as suas variedades, há uma constante: conspirar sempre interessa a um partido, um grupo, a alguém. Ela faz, pois, uma redução favorita deste Brasil que vive de pessoas, pois, personificando o mundo social, a conspiração reduz dilemas e processos sociais complicados e impessoais a vontades e desejos concretos, encarnados em pessoas com rosto e interesses. Com isso, ela divide o mundo num confortável palco de bons (nós) e maus (eles), passando por cima do enorme trabalho de cuidar da sociedade lida como um conjunto de regras e instituições a serem honradas pelos seus eventuais seguidores e dirigentes. Um dos confortos da teoria da conspiração é que ela confirma o Brasil como um sistema incapaz de corrigir-se a si mesmo, pois situa todo o poder causal e regenerativo das crises em personalidades e soluções mágico-ideológicas.

A conspiração fala de um campo político movediço. Um lugar sem limites onde processos legais podem ser destruídos pela vontade de pessoas dotadas de certeza e motivação. Donde a ideologia do ¿golpe¿ ou do uso legítimo da força que, em nome de uma causa maior, dispensa todas as mediações para assegurar a vitória.

Daí o meu espanto que a esfera da ¿política¿ ¿ por oposição à da economia e, por certo, à do futebol que revelam um campo no qual regras fixas permitem disputas honestas dentro de um mercado ¿ ainda esteja sujeita ao apelo das explanações conspiratórias, ao ponto de ser percebida como um lugar impossível de ser administrado por leis válidas para todos.

O retorno da velha teoria da conspiração para explicar os novos escândalos públicos obriga-me a perguntar se nós não estamos lendo o universo político com uma ingenuidade de criança. Não por exigir que a política seja também tocada pela honestidade. Mas por pretender que o mundo da política seja tão rígido quanto o da nossa nem sempre reta moralidade pessoal. Sobretudo quando nos damos conta que o campo político é ordenado por um mercado eleitoral. Um espaço de encontro de candidatos, propostas, projetos e partidos, cujo objetivo é a disputa igualitária por cargos na administração pública.

Como pretender que este contexto político, no qual deságuam todas as ambições e vaidades, bem como uma implacável competição eleitoral, um contexto em que se oferece aos cidadãos reforma, retrocesso, loucura, ignorância, milagres, e até mesmo revolução (como é o caso explícito do MST e foi o do PT), fique imune a ambigüidade, a manipulações divergentes e a manipulação ideológica e pessoal?

Não estou dizendo que a política tenha que ser feita de malandragens. Mas questiono se não seria melhor demonstrar menos indignação moral e mais eficiência investigativa, dessas que, como a medicina, sabem que a doença é sinal de saúde, desde que seja evitada. Seria mesmo possível imaginar que a política não implicasse acordos, consensos, barganhas, fuxicos, acusações levianas, intrigas e gozações públicas repletas de maldade?

Pergunto-me se a postura moralista-conspiratória não seria uma prova de que ainda não compreendemos o universo político moderno em que escolhemos viver. Pois pensar que se pode governar o Congresso Nacional, imaginar que existe uma prática de barganhar cargos e apoios sem reciprocidades, é o mesmo que supor que numa sociedade de mercado existe mesmo um almoço sem pagamento! Ou ficar escandalizado e acusar os bancos de terem lucros. Esse lucro que é a maior marca de sucesso de um bom produto numa sociedade de mercado. Lucro (e não mero ganho monetário) é, como mostrou Weber, sinal de eficiência. É como o superávit que o PT e todos nós gostamos de anunciar. O problema não é o lucro, mas como é obtido e o que se faz com ele. Do mesmo modo, no campo da política, a questão não é a barganha desonesta, mas o que fazer quando ela é escancarada e torna-se um valor.

Chamar tudo de ¿mar de lama¿ é reiterar um moralismo interesseiro e quase sempre autoflagelatório e ler a política com os olhos implacáveis de uma virgem em noviciado. O erro inverso é desqualificar a crítica ao governo, misturando motivação eleitoral legítima com conspiração. Porque a teoria da conspiração só serve para reintroduzir no sistema o código da força bruta, das forças ocultas, da violência disfarçada de ideal, e de um personalizadíssimo companheirismo de armas em má hora invocado para evitar o fato de que o governo tem a obrigação da apuração isenta e da punição exemplar. Essas exigências cabais das sociedades democráticas e de mercado que são o horror dos moralistas autoritários. Esses que tanto gostam de invocar o poder mágico, oculto e nefasto das conspirações.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.