Título: A vida entre quatro paredes
Autor: Ruben Berta
Fonte: O Globo, 10/07/2005, O Globo/Caderno Especial, p. 1

Com a instabilidade da mãe, Maiara teve os abrigos como lar durante sua infância

A cada revés da vida de dona Vicentina, a conseqüência sempre foi imediata para suas duas filhas. A primeira de uma infinidade de passagens de Maiara por abrigos e internatos aconteceu aos 3 anos de idade, logo após a separação dos pais, quando a mãe, sem rumo, colocou-a numa unidade já extinta no bairro de Quintino. No começo, eram períodos de meses até que Vicentina voltasse para resgatá-la. Mas transformaram-se em anos a partir de 1998, quando Maiara chegou, aos 11 anos, ao Centro Municipal de Atendimento Social Integrado (Cemasi) Ayrton Senna, na Mangueira. Este capítulo da história termina em agosto de 2001, com a fuga da jovem, então com 14 anos, para o caminho sem volta das ruas.

¿ Eu vinha avisando minha mãe que o Alexssandro, pai da minha irmã, estava tentando me estuprar, mas ela não acreditava. Até que um dia, viu com os próprios olhos. Como também estava desesperada com a situação financeira, ela resolveu que eu e minha irmã, que estava com 2 anos, íamos ficar de vez num abrigo ¿ conta Maiara.

No relatório feito por uma assistente social após a transferência de Maiara do Cemasi para a Casa Maternal Mello Mattos, no Jardim Botânico, em fevereiro de 1999, Vicentina contava que deixou no início de 1998 as duas filhas sozinhas próximo à Central do Brasil para comprar frutas e ficou surpresa quando na volta não as viu. Maiara, no entanto, conta que tudo estava dentro dos planos. O objetivo da mãe era mesmo que a Kombi da prefeitura as levasse de vez.

Na Mello Mattos, onde Maiara permaneceu por dois anos, a assistente social Ângela Maria Freire tem apenas na memória o registro da passagem da ex-interna e de sua irmã mais nova. Com uma média atual de 50 meninos e meninas entre 2 e 12 anos na instituição, fundada na década de 20, ela conta que há cerca de dois meses teve o arquivo destruído no que diz ser parte de uma série de atos de vandalismo que vem enfrentando há pelo menos um ano:

¿ Hoje, por causa dos convênios com o poder público, temos que aceitar de tudo. Do menino vândalo que vem das ruas até aquele traumatizado por uma violência cometida pelos pais dentro de casa. É olhar para as janelas quebradas e ter idéia do que estou passando. Eu me sinto enxugando gelo.

De Maiara, Ângela confirma uma característica que persiste até hoje: a timidez. O silêncio quase constante serviu até para acobertar Vicentina. Em novembro de 2000, ela conversava com as duas filhas sozinhas no pátio durante uma visita. Uma hora depois, a mais nova havia sumido. Dentro da bolsa de Vicentina.

¿ Ficamos desesperados. Perguntávamos para a Maiara: onde está a sua irmã? E ela nada. Uma semana depois, quando Vicentina deixou a filha mais nova de volta, Maiara continuou calada, do mesmo jeito.

Apesar de reclamar da rigidez, Maiara não tem más lembranças do período na Mello Mattos, mas já indicava que queria mesmo era estar do lado de fora. Como na TV os canais só podiam passar desenho animado, as passagens que ela se lembra melhor são as visitas de voluntários estrangeiros:

¿ Eles levavam a gente para ir ao cinema. Na Mello Mattos, achavam que a gente ia ver filmes bobos, mas a gente pedia mesmo era para ver filme de terror.

Mas as saídas não eram só sinônimo de diversão. Tanto na Mello Mattos quanto no Orfanato Santa Rita de Cássia, na Praça Seca, para onde Maiara foi com a irmã em fevereiro de 2001, era do lado de fora que ela estudava. Em duas escolas municipais conseguiu chegar até a 5ª série do ensino fundamental. Coincidência ou não, das oito séries do ensino fundamental, é a 5ª que tem a maior taxa de abandono no Estado do Rio: 12,1%, segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep).

A cartada final para as ruas aconteceu no abrigo Santa Rita de Cássia, em agosto de 2001. Um mês antes, Vicentina pegou a irmã de Maiara, então com 5 anos, um dia após ser informada de que tinha contra si um processo de perda de guarda das duas filhas na 1ª Vara da Infância e da Juventude. Maiara não foi levada pela mãe. Sozinha, fugiu. Desde então, a única imagem de Maiara que resta no orfanato é a foto da carteira de identidade deixada no meio do caminho. l