Título: DOS PAPAS RENASCENTISTAS E DAS REFORMAS
Autor: Paulo Guedes
Fonte: O Globo, 18/07/2005, Opinião, p. 7

A historiadora americana Barbara Tuchman, em seu clássico "A marcha da insensatez" (1984), classifica os grandes erros dos governos através da História em quatro tipos: 1. Tirania ou opressão, como nos regimes totalitários; 2. Ambição excessiva, como nas tentativas de dominação da Europa por Napoleão e Hitler; 3. Decadência ou incompetência, como no Império Romano e nos últimos Romanov da Rússia imperial; e 4. Insensatez ou perversidade, caso dos papas renascentistas, que "se recusaram a mudar, mantendo em teimosia estúpida o sistema corrupto existente. Não podiam mudar porque eram parte, cresceram e dependiam da corrupção. A ambição, a ganância, o abuso de poder e a certeza de que os descontentes seriam suprimidos, como no passado, por inquisição, excomunhão ou queimados na estaca". Seu comportamento desembocou na Reforma Protestante.

Tuchman dedica seu livro ao estudo deste último tipo de erro dos governos, que se manifesta quando uma política atua contrariamente aos próprios interesses da população. Para qualificar uma política como perversa ou insensata, a historiadora identifica três condições. Primeiro, a percepção contemporânea do equívoco, e não apenas em retrospectiva. Segundo, a possibilidade de uma ação alternativa, uma oportunidade politicamente factível. E, terceiro, que a diretriz seja implementada por um grupo de pessoas, durante tempo relativamente longo, e não apenas por um indivíduo, em curta vida política.

Por esses critérios, o adiamento da reforma política enquadra-se no rol da insensatez. Primeiro, há inequívoca percepção contemporânea de que o sistema político é degenerado. Segundo, após a redemocratização do país, nunca foi tão visível a oportunidade política, quase inevitável, da reforma. O terceiro critério é também atendido, pois o sistema de siglas sem conteúdo doutrinário, infidelidade partidária, legendas de aluguel, tem empobrecido o desempenho do regime democrático nos últimos 20 anos.

Na dimensão econômica, do mesmo modo, o adiamento das reformas passa no teste de insensatez. Primeiro, porque há uma percepção contemporânea de que os gastos públicos são excessivos (reforma do Estado) e centralizados em demasia (reforma fiscal), financiados por impostos elevados e disfuncionais (reforma tributária), com legislação trabalhista obsoleta (reforma trabalhista) e encargos sociais proibitivos (reforma da previdência).

O segundo critério, que confirma a insensatez econômica, é a existência da alternativa liberal-democrata, que garante a ininterrupta geração de empregos e a inclusão social nas economias anglo-saxãs, em contraposição à euroesclerose social-democrata. Os exemplos históricos da reconstrução das economias alemã e japonesa no pós-guerra, a experiência recente de reestruturação dos EUA (Reagan) e da Inglaterra (Thatcher), o formidável desempenho econômico e social do Chile nos últimos 20 anos e os recentes milagres da Rússia, da China e da Índia são evidência empírica de uma dinâmica de crescimento resultante da adoção dos princípios de uma economia de mercado postulados pela liberal-democracia.

O terceiro critério para detecção da insensatez econômica é também atendido. O grupo social-democrata, dos grandes partidos da esquerda brasileira (PMDB, PSDB e PT), reveza-se no poder há vários mandatos, empurrando os gastos públicos de 20% para 40% do PIB.

A corrupção e a estagnação decorrentes são contemporaneamente percebidas. Resultam de uma opção pela social-democracia, lubrificada pela direita fisiológica. E persistem por tempo suficiente para que a classe política, acusada de insensatez ou perversidade, não possa mais alegar apenas ignorância.