Título: A DOR NA PELE E NA MEMÓRIA DE SOBREVIVENTES
Autor: Gilberto Scofield Jr.
Fonte: O Globo, 31/07/2005, O Mundo, p. 40

Milagrosamente sãos ou há décadas sofrendo os efeitos da radioatividade, japoneses relatam suas experiências

HIROSHIMA, Japão. O professor de inglês Hiro Miyagawa, de 76 anos, levou duas décadas para ter coragem de falar publicamente sobre como a bomba atômica em Hiroshima afetou sua vida. O que o impedia era justamente uma enorme vergonha de ter sobrevivido. Afinal, diz ele, a tragédia ceifou 140 mil vidas e deixou milhares de mutilados, doentes, ansiosos e loucos.

¿ Eram tantos cadáveres, tanta gente sofrendo, meus amigos mortos, minha cidade em chamas ¿ diz Hiro, com os olhos perdidos, em frente ao mapa que ele mesmo desenhou com as indicações onde seus pais e amigos estavam no momento da explosão. ¿ E eu estava vivo e sem ferimentos. Eu me sentia estranhamente culpado.

Visão de pessoas vagando `como zumbis¿ pelas ruas

Em 6 de agosto de 1945, Hiro tinha 16 anos e seu rosto estava coberto por uma estranha doença de pele que ele hoje acredita ter sido conseqüência da desnutrição provocada pelo racionamento na guerra. Por esta razão, não foi naquele dia trabalhar no Depósito de Roupas do Exército, próximo ao epicentro da explosão. A dois quilômetros de distância dali, em sua casa, Hiro observava os bombardeiros americanos no céu claro de Hiroshima quando uma estranha bola amarela surgiu no céu.

¿ Eu senti um calor nas minhas costas e fui jogado ao chão. Um estrondo se seguiu à luz e quando levantei a cabeça, minha casa estava parcialmente destruída ¿ conta. ¿ Eu estava levemente queimado nas costas. Minha mãe estava em casa, mas também não havia se machucado. Nós saímos para a rua e vimos uma cena que eu jamais vou esquecer. Dezenas de pessoas andavam sem direção pela rua, feridas, nuas, queimadas, com o corpo destroçado, os braços esticados como zumbis.

Mil origamis que não salvaram uma vida

Aquilo ficou preso em sua garganta e martelava sua cabeça. Vinte anos depois, Hiro decidiu aceitar o convite de um amigo e falar para um grupo de estudantes. Foi como se uma comporta houvesse se aberto.

¿ Nós nos emocionamos muito e eu senti que aquela experiência precisava ser compartilhada. O mundo não podia mais repetir isso de forma alguma. E eu pensei: os sobreviventes da bomba estão envelhecendo e em breve não restará mais ninguém para contar a história. Então me tornei um ativista pela paz ¿ conta ele.

Menos feliz é a impressionante história de Sadako Sasaki, que tinha apenas 2 anos e escapou ilesa da bomba a uma distância de 1,7 quilômetro do epicentro. A menina cresceu saudável e feliz até os 12 anos, quando desenvolveu uma leucemia grave. No Japão, há uma lenda que diz que se uma pessoa fizer mil dobraduras de papel de pássaros (o chamado origami), terá o direito a realizar um desejo.

Pois Sadako fez 1.300 pássaros de papel não apenas das embalagens de remédios que tomava, mas de qualquer papel que achasse pela frente. Morreu oito meses depois, e sua história se tornou famosa no Japão. Após sua morte, um grupo de amigos se mobilizou para erguer o Monumento Infantil pela Paz, hoje em Hiroshima, representado por uma menina segurando um imenso origami de pássaro em cima de um pedestal em formato de bomba. Até hoje, grupos vão ao local depositar origamis de papel colorido ao redor do monumento como uma homenagem às crianças mortas pela bomba.

Já Shizuko Abe viu sua juventude ceifada por horrendas cicatrizes na parte direita do seu corpo, que doem até hoje, 60 anos depois.

¿ A parte direita do meu rosto, meu queixo, meu braço direito e minha barriga ficaram deformados. As pessoas me chamavam de demônio e eu sofri muito por causa disso. Mas tive um apoio enorme da família ¿ conta.

Voluntários fazem palestras sobre o horror da bomba

A história do casamento de Shizuko, por si, daria um filme. Ela estava noiva de um oficial do Exército japonês que lutava no Sudeste Asiático. No fim de 1945, ele voltou a Hiroshima para encontrar sua noiva deformada e hospitalizada com feridas por todo o corpo. Mas ao contrário do que esperava a própria Shizuko, seu noivo ¿ cujo nome ela se nega a dizer ¿ decidiu se casar com ela, para desgosto dos pais dele.

¿ Eles chamavam meu marido de idiota, mas nós nos casamos enquanto eu ainda estava hospitalizada e tivemos três filhos. Há 13 anos, quando meu marido já estava doente e perto de morrer, ele me chamou e disse que a vida comigo tinha sido muito feliz ¿ conta ela, com os olhos cheios d¿água.

Casos como este comovem Yoshinori Obayashi, um aposentado que hoje faz parte da ONG Voluntários da Paz de Hiroshima e trabalha fazendo palestras sobre os horrores da bomba atômica em universidades pelo mundo.

¿ É preciso conscientizar os jovens. Assim evitamos criar adultos irresponsáveis ¿ diz ele, que tinha 16 anos no dia da explosão e trabalhava na fábrica de equipamentos do Exército a 2,3 quilômetros do epicentro da bomba

Vários sobreviventes se tornaram religiosos

Yoshinori teve sorte. Não precisou entrar no centro da cidade nos cinco dias após a explosão e seu contato mais próximo com a radioatividade aconteceu horas depois da bomba, quando caiu a chamada chuva negra, provocada pelas nuvens formadas pela explosão.

¿ Eu e um amigo pegamos um pedaço de metal que achamos no chão e nos cobrimos com aquilo. Acho que o metal nos protegeu ¿ conta.

Mas a experiência mudou sua cabeça e o tornou religioso, como aconteceu com vários sobreviventes. Ele entrou para uma igreja protestante, onde conheceu sua mulher, outra sobrevivente, e acredita que está vivo até hoje por um milagre de Deus:

¿ A gente se acha no controle das coisas, mas isto é uma ilusão. A verdade é que nosso destino está só um pouco em nossas mãos.

AMANHÃ: A DEVASTAÇÃO EM NAGASAKI