Título: A palavra sitiada
Autor: Rachel Bertol
Fonte: O Globo, 06/08/2005, Prosa & Verso, p. 1

Há uma tendência a vincular o silêncio dos intelectuais aos últimos acontecimentos do país. Nada mais apressado. É evidente que a situação exige de todos - do cidadão ao presidente - posição clara. Isso é lugar-comum e seria pedir muito pouco do intelectual. A tendência em tempos midiáticos é sempre buscar a opinião do intelectual sobre qualquer assunto. Ora, sabemos que uma opinião opõe-se sempre a outra e, nesse circulo vicioso e vazio, chega-se à velha conclusão: uma opinião torna-se apenas a expressão de interesses, paixões e caprichos. Enfim, tudo se passa como ensinou Guimarães Rosa: "cada um o que quer aprova: pão ou pães, é questão de opiniães".

A crise da civilização, que vai muito além dos fatos políticos (não há área da atividade humana que não esteja passando por uma revisão radical), criou um campo minado para a palavra e pode levar o intelectual ao silêncio. Na sua famosa Elegia "Pão e vinho", o poeta Hölderlin interroga: "Por que eles também estão em silêncio, os antigos teatros sagrados?".

O silêncio deve ser entendido menos como covardia e mais como a expressão de uma crise da relação do intelectual com o pensamento, com a política e com a palavra sitiada. Hölderlin conclui em seu último verso: "Nada existe onde fracassa a palavra".

Entendamos, pois, o intelectual como "funcionário" da palavra: é ele que estabelece o vínculo entre os ideais universais - Razão, Liberdade, Justiça e Verdade - e o espaço público. Assim, ele participa da política de maneira muito singular: porque, por função, ignora o pragmatismo político, o intelectual participa dela sem pertencer a ela. Mais: diante de uma crise sem precedentes e sem exemplos na História - relativismo (tudo se equivale), ceticismo da política, falência dos grandes projetos de transformação social - o intelectual vê-se obrigado a retomar as duas questões postas por Kant em 1786 no seu famoso texto "O que se chama orientar-se no pensamento?": onde estamos? Para onde vamos?

Em breve texto escrito em meio às famosas jornadas de Maio de 68 na França, quando a revolução tomou a palavra e os filósofos foram às ruas, o filósofo Dionys Mascolo criticou a ilusão muito difundida de que, entre todas as outras atividades humanas sujeitas à servidão, a palavra, por uma "virtude natural", seria relativamente livre. O mais grave, diz ele, é que a maioria das pessoas que lidam com ela acredita nisso. "O trabalho da fala", disse ele, "é um trabalho como outro qualquer, alienado como outro qualquer, como qualquer outro condicionado pelo sistema social decorrente das relações de produção".

O silêncio é menos uma resposta à situação do que a expressão da situação de impotência. Sabemos que o pensamento apenas não basta para enfrentar os desmandos da política. Lemos na "Teoria crítica" de Max Horkheimer que as convicções sem fundamento de uma época não costumam ser destruídas apenas pelo pensamento: "enquanto estas convicções forem mantidas por forças sociais poderosas, a inteligência pode muito bem desencadear-se contra elas: o fetiche não é destruído; apenas o é o testemunho que se eleva contra ele". Horkheimer cita Helvecius para descrever a condição trágica do intelectual contemporâneo: "A revelação da verdade só é funesta para aquele que a diz".

ADAUTO NOVAES é organizador de ciclos de conferências sobre pensamento que estão completando 20 anos este mês