Título: A palavra responsável
Autor: Rachel Bertol
Fonte: O Globo, 06/08/2005, Prosa & Verso, p. 1

Falando de si mesmo, Sartre disse certa vez que o intelectual se ilude ao tomar a sua pena por uma espada, mas que a constatação de que palavras são insuficientes para transformar o mundo em nada deve alterar o compromisso do escritor. Provavelmente ele queria dizer que, mesmo não sendo o intelectual um guia, ou as idéias bandeiras, ainda assim valeria a pena exercer essa função crítica e negadora ligada à índole contestatória das idéias. Não se passaram tantos anos e já temos de nos perguntar se mesmo isso não seria ainda persistir na ilusão. Numa sociedade em que os efeitos midiáticos condicionam o pensamento e em que o espaço público de interlocução foi substituído pela estratégia da imposição publicitária, ainda há lugar para palavras e idéias? Testemunhamos há muito tempo o extraordinário poder que possui o sistema para diluir a crítica e a contestação e para exaltar manifestações que tendem a reiterá-lo e a reafirmá-lo como inevitável e natural. Temos de admitir o êxito do projeto contemporâneo de destituição ética da pessoa por via da banalização da palavra. Nesse sentido, não surpreende que todo e qualquer uso de idéias e palavras para além da dimensão imediatamente utilitária seja visto como gratuito ou irrelevante.

Ora, esse recuo exigido pelo compromisso crítico é condição mínima do exercício responsável da palavra - o que se espera seja a função do intelectual. Nesse sentido, tanto o silêncio quanto a fala podem ser instrumentos de omissão. Omite-se aquele que se cala por dever partidário, assim como se omite também aquele que só fala por dever partidário. Em ambos os casos a razão crítica é substituída pela racionalidade justificadora. Isso não quer dizer que o intelectual esteja acima dos acontecimentos: para ele, viver o dilema de ter de escolher, por vezes, entre a fala e o silêncio, significa a experiência dramática de ter de pensar os acontecimentos na raiz histórica de suas contradições, ali onde qualquer adesão dogmática é insuficiente, portanto falsa.

FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA é professor de filosofia da USP