Título: A crise nos constrange
Autor: Rachel Bertol
Fonte: O Globo, 06/08/2005, Prosa & Verso, p. 1

Diferencio intelectual e cientista. O cientista faz sua pesquisa e a melhor realização da mesma é o avanço da ciência que ela proporciona. Já o intelectual leva a pesquisa à ágora, à discussão em praça pública. Geralmente, os intelectuais são de ciências humanas, mas isso não é óbvio. Há muitos cientistas humanos que jamais serão intelectuais. E um biólogo, quando debate o uso social de suas descobertas, é intelectual.

Há, então, intelectual em silêncio? Não faz parte da definição mesma de intelectual falar em público, ao público, sobre a coisa pública? Mas o fato é que a crise atual nos constrange. Ela faz muitos intelectuais renunciarem a seu papel de refletir sobre a política. Daí que seja uma crise, também, do que é ser intelectual de esquerda. Gostaria aqui de observar apenas duas coisas.

A primeira é que não se resolve a crise da esquerda no poder, que hoje vivemos, sem uma grande limpeza pública de roupa suja. O PT, mesmo na maior crise de sua história, é ainda o partido mais escolado na discussão interna, custe-lhe ela o que custar. Não pode desperdiçar esse patrimônio - que, aliás, não lhe pertence mais: é da sociedade brasileira. Aliás, ele deve se antecipar, e apurar por conta própria o que se fez de errado.

A segunda é mais delicada. Não adianta nos refugiarmos na solução default dos brasileiros para as crises políticas, que é fugir para os valores da vida privada, mais uma vez renunciando a construir um espaço público, uma "res publica". Está mais que na hora de cessarmos o movimento pendular entre as declarações de grande honestidade - mas a preço de não conseguirmos agir - e uma prática que renega toda teoria, toda idéia, todo ideal. É hora de criticarmos as práticas a partir das idéias, e as idéias a partir das práticas. O erro da Realpolitik, talvez no próprio PT, foi valorizar uma prática sem ideais ou idéias. O erro de alguns críticos de esquerda ao atual governo é valorizar idéias e ideais sem compromisso prático.

RENATO JANINE RIBEIRO é professor de filosofia política e estética na USP e diretor de avaliação da Capes