Título: INTELECTUAIS DIANTE DA CRISE
Autor: Rachel Bertol
Fonte: O Globo, 06/08/2005, Prosa & Verso, p. 1

Pensadores discutem caminhos entre o silêncio e a ação para se posicionar frente a desmandos na política

Faz mais de um ano, bem antes de os escândalos do governo Lula virem à tona, Adauto Novaes teve a idéia de realizar o ciclo de conferências "O silêncio dos intelectuais". Novaes organiza ciclos para debater grandes linhas do pensamento há 20 anos e, desta vez, o objetivo seria entender a crise contemporânea que levou os intelectuais a desenvolverem uma nova relação com a sociedade, bem diversa da que se moldou nos anos engajados de Jean-Paul Sartre, Malraux, Susan Sontag, Edward Said e muitos outros. Uma relação que, em sua opinião, tornou-se evidente depois do 11 de Setembro, quando predominou a perplexidade frente ao inesperado. De acordo com Novaes, o atual ciclo não visa a "definir ou mesmo discutir a intervenção direta dos intelectuais na política", mas busca responder à pergunta: "O que levou ao silêncio os intelectuais, antes tão ativos, diante do que acontece?".

No entanto, a poucos dias do início do ciclo - em 22 de agosto, no Teatro da Maison de France -, o tema do silêncio ganha uma urgência particular na realidade brasileira devido à crise que expõe jogos ilícitos de poder, figuras corruptas e põe em xeque a política nacional. Afinal, de que modo poderiam os intelectuais contribuir para dar maior clareza aos acontecimentos? Estaria a atual crise deixando os intelectuais brasileiros, muitos originários da esquerda, como o PT, ainda mais acuados para expressar idéias e opiniões? Ao sair do silêncio, como enfrentar a perplexidade de forma racional, marcando posição na arena pública que, de outra forma, poderia ser ocupada por forças quem sabe populistas e/ou autoritárias?

Participantes do ciclo comentam essas questões nas páginas 2 e 3. A maior parte se mostra cautelosa e cética sobre a posição do intelectual diante da crise. Adauto Novaes observa: "O silêncio é menos uma resposta à situação do que a expressão da situação de impotência. Sabemos que o pensamento apenas não basta para enfrentar os desmandos da política". O filósofo Newton Bignotto, professor da UFMG, diz que a cautela do intelectual corre o risco de ser qualificada de "silêncio temeroso", mas, por outro lado, quem fala também pode ficar cada vez mais parecido "com os profetas de ocasião e os moralistas de última hora". O filósofo Franklin Leopoldo e Silva, professor da USP, alerta que tanto o silêncio quanto a fala podem ser instrumentos de omissão.

O filósofo Renato Janine Ribeiro, também da USP, não se exime de opinar sobre os dilemas do PT, mas reconhece: "O fato é que a atual crise nos constrange. Ela faz muitos intelectuais renunciarem a seu papel de refletir sobre a política". Para Sérgio Paulo Rouanet, o papel do intelectual não pode ser tão grandioso quanto no passado, nem precisa ser "tão humilde quanto aquele a que foi reduzido no presente". Em sua opinião, "o importante é que em sua ação política o intelectual não abra mão do que constitui sua razão de ser: o universalismo que o induz a pensar e agir".

Ciclo faz parte de trilogia

O ciclo "O silêncio dos intelectuais" acontecerá simultaneamente no Rio, em São Paulo, Belo Horizonte e Salvador. A filósofa Marilena Chauí, professora da USP, fará a primeira palestra dia 22 no Teatro da Maison de France (Av. Presidente Antonio Carlos 58), no Rio. Ela tentará responder à pergunta: "Intelectual engajado, figura em extinção?". No dia seguinte, será a vez de Francisco de Oliveira, que rompeu publicamente com o PT em 2003, debater "o silêncio do pensamento único: intelectuais, marxismo e política no Brasil". Participam também Marcelo Coelho, Fernando Haddad, Franklin Leopoldo e Silva, Antonio Cicero, Sérgio Paulo Rouanet, Newton Bignotto, Renato Janine Ribeiro, José Raimundo Maia Neto, Haquira Osakabe, José Miguel Wisnik, além dos estrangeiros Francis Wolff, Géraldine Muhlmann, Michel Déguy e Jean-François Sirinelli.

O ciclo, que termina em outubro, é o primeiro da trilogia "Cultura e pensamento em tempos de incerteza", que vai debater em 2006 "O esquecimento da política" e "A política do espírito". No primeiro dia, será lançado o livro "Os poetas que pensaram o mundo", organizado por Adauto Novaes. As inscrições abrem segunda-feira na Maison (tel. 3974-6899). As conferências no Rio começam sempre às 18h45m, segundas, terças e quartas-feiras.

Usados como ornamento

O Brasil inscreve-se no quadro das sociedades em cuja formação o papel dos intelectuais sempre foi de relevo: somos "franceses" nesse aspecto. Ao contrário da tradição norte-americana, na qual o capitalismo nascente não teve necessidade de produzir "intelectuais orgânicos" que elaborassem a legitimação da nova ordem. O papel e o lugar dos intelectuais desde nossa Independência foram notáveis na formação da nacionalidade; antes das ciências sociais, a literatura já discutia o país, sua sociedade, seus impasses, seus estigmas, bem como um projeto de nação. Avançando no século XX, as novas instituições e formas do Estado brasileiro encontraram seus melhores formuladores nos autoritários clássicos. Celso Furtado foi o intelectual-mor do desenvolvimentismo.

O marxismo foi tardio na formação dos intelectuais brasileiros. O Partido Comunista já surgiu numa convergência, quase clássica, de trabalhadores e intelectuais. Mas a elaboração crítica marxista foi abortada rapidamente pelo que Marcuse chamou de "marxismo soviético". As razões disso são bem conhecidas: a militarização do PCB por Prestes, seu positivismo, e o reformismo mal disfarçado, produto da clandestinidade e do abandono da perspectiva revolucionária. Caio Prado Jr. foi uma exceção criadora (...), embora o Partido tenha reunido o melhor da intelectualidade brasileira. Apesar da pouca originalidade, o papel de formação do marxismo, através da militância dos intelectuais, foi inegável e influenciou a formulação de políticas do Estado para a educação e a cultura. E isso até mesmo durante a ditadura militar.

(...)O marxismo penetrou pouco na universidade, até porque ela não existia até os anos de 1930. Na década de 1970, uma versão mais próxima da vulgata teve enorme circulação na universidade brasileira. Marx tornou-se leitura obrigatória - embora não se saiba com que profundidade fora lido -, principalmente na linha de Althusser e Poulantzas. Durou pouco esse auge: o desprestígio do marxismo nos meios universitários europeus chegou aqui (...).

Mas, mesmo em versões empobrecidas (...) esse breve prestígio do marxismo na universidade ampliou muitíssimo o alcance da crítica à ditadura e ao sistema capitalista. Foi nessa época que a produção sociológica, entre Weber e Marx, teve enorme circulação e efeito sobre a política. Essa crítica influenciou nitidamente a Teologia da Libertação, alcançando toda a América Latina. No México, que recebeu a diáspora latino-americana, assim como havia recebido os republicanos da Espanha três décadas antes, a influência do marxismo na universidade era quase hegemônica, refletindo-se nas grandes editoras do país.

Foi quando nasceu o Partido dos Trabalhadores, também de uma convergência entre trabalhadores e intelectuais, com um diferencial, se comparado a outros partidos de esquerda: uma dimensão ética, conferida pelas Comunidades Eclesiais de Base. Havia chegado a hora de retomar, ampliando-a sem limites, uma elaboração crítica do capitalismo e da sociedade brasileira que poderia ter alcance latino-americano, no mínimo, e, por que não dizê-lo, mundial, tendo em vista o declínio da esquerda. Mas o marxismo, em sua versão reducionista, continuava a ser cultivado por intelectuais e militantes da luta armada que entraram para o PT.

Contudo, tal elaboração crítica do capitalismo não aconteceu; e o PT passou a usar os intelectuais no velho "esquemão" que o PCB tinha inaugurado: como ornamento. Salvo no que diz respeito às políticas sociais, para as quais uma sociologia renovada chamava insistentemente a atenção, e à crítica à política econômica da ditadura e da Nova República, de Fernando Collor e de FHC; mesmo essa crítica era mais de cunho analítico do que teórico. Depois, suas políticas no poder situaram-se - e situam-se - nas antípodas do que a crítica do capitalismo havia elaborado para as condições específicas do subdesenvolvimento periférico. A complexidade da nova etapa do capitalismo escapou inteiramente ao PT no governo, que, frente a ela, refugiou-se no conservadorismo.

Assim, o "pensamento único" caracterizou a produção intelectual no Brasil. A passagem do PT à condição de "partido da ordem" aliou-se a uma progressiva profissionalização da academia, transitando agora pelas grandes reuniões mundiais, onde o marxismo é, no máximo, tolerado. Há uma clara vitória ideológica da direita. Quando muito, a esquerda voltou a posições nacionalistas anacrônicas: JK é hoje seu herói. Como afirmou Roberto Schwarz, a conjuntura é péssima, ótima para renovar o pensamento brasileiro pelo marxismo. Um "amor sem uso" fenece.

FRANCISCO DE OLIVEIRA é professor de sociologia da USP

* Trecho da sinopse de sua palestra