Título: Chauí: Lula rendeu-se à `armadilha tucana¿
Autor: Arnaldo Bloch
Fonte: O Globo, 23/08/2005, O País, p. 12

Estrela da intelectualidade petista quebra silêncio mas é cautelosa: `ainda não compreendo bem a natureza da minha indignação¿

O governo Lula falhou ao render-se à ¿armadilha tucana¿ de promover uma transição com base em imperativos econômicos e financeiros em vez de fazer logo a reformas tributária ¿ fundamental para melhorar a distribuição de renda e viabilizar o Fome Zero ¿, e a reforma política, essencial para assegurar a governabilidade. Este foi a análise da filósofa Marilena Chauí ¿ expoente da intelectualidade petista ¿ para a crise política ao abrir, ontem à noite, no Consulado da França, o ciclo de debates O Silêncio dos Intelectuais, sendo precedida pelo ministro Gilberto Gil e por Adauto Novaes, organizador do seminário.

No longo texto, não há a palavra corrupção

No texto de uma hora e meia em que constituiu sua apresentação a palavra corrupção não foi pronunciada uma só vez, e Marilena só fez referência à crise política durante o curto tempo para debates, quando lhe perguntaram se o fato de Severino Cavalcanti e José sarney apoiarem o projeto petista não aproximava a figura de Lula da de um Coronel Nordestino:

¿ Não é verdade que Severino e Sarney apóiem o projeto do PT. O projeto do PT era outro. E isso me leva a apontar dois grandes problemas do atual governo. Um deles foi tornar a tal da transição o ponto central da política governamental em vez de colocar as políticas sociais na dianteira. Somos o segundo país do mundo em desigualdades, depois de Serra Leoa, que está em guerra civil. A primeira ação, que daria um sentido mais que simbólico ao Fome Zero, seria a reforma tributária. Em vez disso, se fez a reforma da previdência, que os tucanos não tiveram coragem de fazer. Conheci muitos tucanos no ambiente acadêmico, e é preciso ficar com dois pés, duas mãos e a cabeça atrás com o que eles propõem ¿ disse.

O segundo problema, de acordo com a filósofa, foi o de ter negligenciado a reforma política como outro pilar importante para sustentar a governabilidade.

¿ Na época eu dizia que o nosso presidencialismo é uma aberração, com partidos fragmentados, sem distribuição clara, sem representatividade, e que nenhum presidente tem maioria no Congresso. Sempre soubemos como se obtém apoio e votos. Então, sem reforma política, a aliança se impôs. O PT não era criticado por ser um partido arcaico, por não fazer alianças? Pois bem, aí está a aliança ¿ ironizou, para enfim fazer a defesa do PT, salientando que seu verdadeiro projeto foi ofuscado por uma oposição equivocada de estratégia governamental.

Antecipando-se a críticas, ela justificou o fato de não ir muito adiante nas análises do quadro atual dizendo que a indignação nem sempre deve levar o intelectual a lançar mão da revolta e sair dizendo a primeira coisa que vem à cabeça.

¿ Muita gente prefere que o intelectual vocifere sua revolta e todos vão para casa tranqüilos. Mais importante que a revolta, entretanto, é a virtude, no sentido de se compreender a adversidade para transformá-la em algo produtivo. Podíamos ficar horas aqui abrindo um leque enorme de motivos de indignação os mais diversos e até opostos, mas o intelectual às vezes tem que preferir o silêncio se o quadro ainda não está suficientemente claro. Sim, estou indignada, mas confesso que ainda não compreendo bem a natureza da minha indignação e os fatos em si. Por isso não tenho escrito sobre o assunto nem dado entrevistas.

Durante o seu discurso Marilena resvalou indiretamente na crise, mas como sintoma de fenômenos que envolvem a política como um todo que não excluiu uma crítica ardorosa às esquerdas contemporâneas:

¿ Pautada pelas teses da pós-modernidade, a sociedade contemporânea transformou a política numa operação de marketing e o político num produto a ser consumido pelo eleitor. No mundo que hoje entendemos como sociedade do conhecimento os intelectuais se transformaram em especialistas com receitas de bem-estar a serviço da lógica das empresas. Nesse sistema, quem detém algum conhecimento comanda os demais, e no Brasil isso é especialmente acentuado porque o nosso intelectual é herdeiro da tradição dos bacharéis, dos poetas de prestígio, uma tradição autoritária. A a esquerda pós-moderna, por outro lado, num mundo em que a democracia só garante as liberdades entre aqueles que compartilham uma mesma identidade nacional, em defensora da lógica de que o inimigo é o diferente, o estrangeiro, que deve ser exterminado, em movimentos que muitas vezes se afinam com as teses Carl Schmidt, o ideólogo nazista.

Quadro de fragmentação envolve todas as esferas

De acordo com a análise de Marilena, esse quadro de fragmentação que envolve todas as esferas, da arte ¿ absorvida pela indústria cultural ¿ à política, passando pela ciência (cujas conquistas associam-se à competição econômica e na qual o conhecimento científico vira segredo empresarial) faz com que cidadão, ao refletir sobre a atualidade política, enxergue o mal no caráter deste ou daquele político, e jamais nas instituições ou em seu funcionamento.

¿ Isso acontece porque, de acordo com a pós-modernidade que hoje se festeja tanto, só o presente, só o imediato, só o impulso, interessam. Esta maneira de enxergar a realidade é contrária à própria noção de cidadania.