Título: DESIGUALDADE PÕE EM XEQUE POLÍTICAS NEOLIBERAIS
Autor: Flávia Oliveira/Luciana Rodrigues
Fonte: O Globo, 28/08/2005, Economia, p. 27

Economistas discutem alternativas econômicas enquanto o Consenso de Washington dá sinais de esgotamento

O diagnóstico das Nações Unidas sobre a armadilha de desigualdade da qual os países se tornaram prisioneiros, apesar do acelerado crescimento mundial dos últimos anos, reacendeu o debate sobre a eficácia das políticas econômicas neoliberais pregadas pelos países ricos, principalmente os Estados Unidos, desde o fim dos anos 80. Pesos pesados da academia, como Paul Krugman e o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, ambos americanos, já vinham alertando para a fadiga do modelo. Agora, analistas de diferentes países tentam costurar uma nova estratégia de desenvolvimento global.

Em setembro, economistas de Japão, Europa e América Latina se reunirão na China para discutir o que já vem sendo chamado de "Consenso de Pequim". A expressão, usada pela primeira vez num artigo de Joshua Ramo, consultor do banco americano Goldman Sachs e professor da chinesa Universidade de Qinghua, é uma resposta ao Consenso de Washington, espécie de receituário neoliberal lançado em 1989 e que se apóia no tripé abertura comercial, disciplina macroeconômica e economia de mercado.

O professor da UFF Theotonio dos Santos, que participará de outra reunião sobre o Consenso de Pequim em Xangai, em abril de 2006, argumenta que nenhum dos países desenvolvidos adotou, de fato, as políticas de redução dos gastos públicos que pregam desde a década de 80. Ele cita a dificuldade dos membros da União Européia (UE) de cumprirem as metas de austeridade fiscal do bloco e o elevado déficit americano, hoje na casa dos US$500 bilhões ao ano.

- Como podem chamar isso de livre comércio com um déficit dessa grandeza, que na prática significa uma intervenção brutal na economia?

América Latina vive uma 'segunda geração da crise'

Se o modelo defendido por Washington não foi adotado pelos próprios países ricos, sua implantação na América Latina causou enorme frustração, argumentam os críticos. Em visita recente ao Brasil, o americano Paul Krugman afirmou que o país e a América Latina vivem um "momento de perda de fé" em suas estratégias de desenvolvimento, diante da frustração da política de liberalização dos mercados, cujos benefícios não chegaram à maioria da população.

Rogério Studart, diretor-executivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para Brasil e Suriname, acredita que a região vive uma segunda geração de crise, na qual os países questionam as reformas institucionais - relacionadas a marco regulatório, aperfeiçoamento dos contratos e proteção aos credores - realizadas a partir do fim dos anos 90. Antes, acrescenta, já houvera uma primeira rodada de críticas, em razão da privatização e abertura dos mercados:

- A região entrou tarde na onda liberal e está saindo mais tarde ainda. E perplexa.

O relatório divulgado pela ONU quinta-feira passada mostrava que, nas últimas décadas, a pobreza ficou estagnada na América Latina, com 10% da população vivendo com menos de US$1 por dia, e que a desigualdade aumentou.

Após reformas, países revêem papel do Estado

Avanço da China, sob ingerência do governo, alimenta a polêmica

No centro do debate sobre qual seria a melhor tática para se alcançar o desenvolvimento econômico sem abrir mão do social, está o papel do Estado. Segundo Rogério Studart, do BID, a América Latina acreditou que, se realizasse as reformas para reduzir o peso do Estado e flexibilizar os mercados, suas demandas por crescimento e inclusão social se materializariam automaticamente. Sonho desfeito, hoje há nações que diminuíram tanto o tamanho do Estado que, em muitos casos, diz ele, não têm sequer quadros profissionais para idealizar as políticas de recuperação.

- Havia a crença de que os mercados se desenvolvem como cogumelos. A crise se deve à constatação de que o desenvolvimento dos mercados ou demoram demais para ocorrer espontaneamente ou precisam de estímulos de políticas oficiais - completa.

No outro lado do mundo, os economistas vêem com espanto o salto dado por China e Índia, que crescem a um ritmo superior a 7% ao ano sob forte ingerência estatal.

- Os neoliberais ficaram desesperados com a China, e a experiência chinesa precisa ser levada em conta. Se eles conseguiram crescer e retirar grande parte da sua população da pobreza, a América Latina também pode fazer o mesmo - diz Theotonio dos Santos, da UFF.

Desigualdade frustra europeus e americanos

O economista John Williamson, considerado o pai do Consenso de Washington, retruca que o avanço da China veio justamente de uma redução do tamanho do Estado.

- Se alguém conseguir mostrar que a China cresceu exatamente porque não tem economia de mercado, é outra coisa. Mas, para mim, a China cresceu porque, nos últimos 20 anos, fez mudanças nessa direção (do mercado).

Qualquer que seja a cartilha, a expansão chinesa não evitou um aumento da desigualdade de renda, mostrou o relatório da ONU. O economista Joseph Stiglitz não cansa de repetir que na lista de recomendações do Consenso de Washington a questão da eqüidade não era sequer mencionada.

- A eqüidade importa não apenas como um fim em si mesma. Quando a eqüidade aumenta, a economia cresce - afirmou em palestra no Brasil no início do mês.

A desigualdade é o calcanhar-de-aquiles das economias americana e européia hoje. Studart, do BID, diz que, no caso da Europa, cujas democracias sempre foram conhecidas pela forte rede de proteção social e expressiva qualidade de vida, os países não se conformam em conviver com o aumento da desigualdade. Nos EUA, a distribuição de renda também piorou e, para especialistas, o vigor econômico vem sendo obtido à custa de desequilíbrios que podem resultar em crise macroeconômica.