Título: Um dia de ódio
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 15/09/2005, O Globo, p. 2

A crise mostrou todos os dentes ontem no Congresso. Seu deflagrador, Roberto Jefferson, viu cumprir-se a primeira parte de seu desígnio, a própria cassação. O surgimento de um cheque selou o destino de Severino Cavalcanti, que entrincheirou-se em casa. O STF concedeu liminar a deputados sujeitos a cassação determinando que sejam ouvidos pela Corregedoria, decisão que também tumultuou o Congresso em seu dia mais febril.

Sobre Jefferson, parece ter razão a deputada tucana Zulaiê Cobra: ele não queria piedade nem clemência, queria mesmo ser cassado. Absolvido, poderia não ver cumprir-se seu plano de vingança, pela cassação de Dirceu e outros 16 deputados que diretamente ou não ele acusou. Seu discurso, muito aplaudido, consagra a retórica do ódio como estilo do momento. Um outro bom exemplo foi a entrevista do deputado Nelson Marquezelli à CBN, em defesa de Jefferson, acusando o PT de planejar implantar aqui uma república comunista, como se houvesse lugar no mundo de hoje para isso. Depois de ter assegurado tantas vezes a inocência do presidente Lula, ontem Jefferson o acusou de ser culpado por ação ou omissão. Chamou-o de "malandro e preguiçoso" e a Dirceu, de Jeane Mary Corner do Congresso. Ganhou do presidente da Mesa, José Thomas Nonô, o dobro do tempo dado ao relator, mas continuou falando em cerceamento de defesa. Se quisesse a indulgência, teria tido pelo menos um momento de humildade, reconhecendo que participou do esquema de favorecimento financeiro aos partidos da base governista e revelado a quem distribuiu os R$4 milhões que dele recebeu. Mas não se ouviu dele uma só palavra de autocrítica ou reconhecimento de que também errou. Só a jactância por ter denunciado o esquema, como se isso lhe desse indulgência plena.

Severino ficou em casa, ruminando sobre os apelos para que renuncie à presidência. Espera-se que o faça hoje, apesar das notícias de que pretende resistir, refugando como prova o cheque endossado por sua secretária, que teria apenas tomado dinheiro a juros de Buani, que praticaria mesmo agiotagem no Congresso, segundo funcionários da Câmara. Mas PT e PMDB, que não assinaram o pedido da cassação na primeira hora à espera de provas, ontem já não tinham argumentos. Mas houve prova, e isso foi importante para o processo como um todo. Com renúncia ou cassação, a Câmara enfrentará uma sucessão tumultuada, em que nenhuma regra pode ser invocada.

A notícia de que o STF concedera a liminar pedida por seis deputados do PT sujeitos a cassação produziu reações imediatas, acusações de ingerência no outro poder. Mas isso passou logo, num reconhecimento de que a Corregedoria quebrou mesmo os ritos ao enviar os pedidos de cassação das duas CPIs para o Conselho de Ética sem ouvir os deputados citados. O deputado Michel Temer, um constitucionalista, explicou a muitas rodas estar o Supremo agindo em defesa dos direitos individuais expressos na Constituição. Em defesa do devido processo legal e do direito de defesa, uma conquista civilizatória que ajudou a marcar o fim da idade das trevas, em que mandava e condenava os que tudo podiam. A decisão do ministro Nelson Jobim foi daquelas que se sujeitam a incompreensões durante o incêndio para serem apreciadas na serenidade do futuro. Certamente desagradou à endeusada opinião pública, ou aponta o caminho reto, embora ela esteja preferindo o atalho para que as punições venham logo. Os que devem serão cassados mas se isso acontecer com a observância de seus direitos, não terão do que reclamar. Apressadas foram as CPIs e a Corregedoria, em sua ânsia de mostrar que não montavam pizzas. A crise não deve justificar negligências para com os ritos do estado de direito. Tomando este rumo, amanhã os caçadores poderão ser cassados