Título: KATRINA ETERNO
Autor: Cristóvam Buarque
Fonte: O Globo, 17/09/2005, Opinião, p. 7

O GLOBO de 11/9 trouxe uma informação surpreendente: "a taxa de mortalidade entre americanos negros (leia-se pobres) é maior do que a do estado de Kerala". Kerala é um pequeno estado ao sul da Índia, com renda per capita muito próxima à da média indiana, US$450. Em Washington, capital dos EUA, a renda per capita é superior à média americana, de US$35.000.

Por que Kerala tem a renda per capita da Índia e alguns indicadores sociais da Europa? E por que os EUA têm a renda per capita da Europa e algumas de suas classes sociais têm indicadores abaixo dos da Índia? Por que o Brasil exibe tão vergonhosa posição na classificação de desenvolvimento humano, e está entre os oito países com a pior concentração de renda? Por que nosso IDH é menor do que o de países latino-americanos menores, mais pobres, com mais crises?

A resposta está na economia. Não no tamanho, porque a americana é a maior do mundo, e o Brasil é uma potência econômica. Mas na ênfase dada a ela como solução dos problemas sociais.

Durante dois séculos, o mundo acreditou que o crescimento econômico levaria à igualdade e a melhores condições sociais. Na visão capitalista, a propriedade privada e o mercado aumentariam a produtividade e distribuiriam renda, e a democracia espalharia os benefícios sociais; para o socialismo, a estatização e o planejamento fariam o mesmo de maneira ainda mais rápida. Ambos erraram. O socialismo, além de mostrar ineficiência produtiva, sacrificou as liberdades individuais, e terminou concentrando benefícios para as classes dirigentes. O capitalismo, em sua etapa global, mostra que o êxito da economia aumenta a riqueza, mas não reduz a pobreza, e ainda agrava a desigualdade.

Na mesma matéria, lemos que "um bebê do sexo masculino nascido entre os 5% mais ricos dos EUA vive 25% a mais do que um menino nascido entre os 5% mais pobres". A possibilidade de pagamento de serviços de saúde está provocando uma diferença na esperança de vida, de acordo com a classe social, em níveis nunca antes vistos entre nobres e plebeus. A economia tem sido instrumento de concentração de renda e de qualidade de vida, separando um Primeiro Mundo internacional de ricos, como vemos no Brasil, do arquipélago social de pobres espalhados pelo mundo, mesmo em países ricos, como mostrou o Katrina.

O que promove justiça social não é o crescimento econômico, mas políticas sociais distribuídas universalmente. Foi isso que aconteceu na Europa e em Kerala, duas economias de tamanho radicalmente diferente, mas com políticas sociais, principalmente educacionais, universais. Para isso, é preciso haver uma economia capaz de gerar excedente fiscal para o setor público, um setor público com renda suficiente, e políticas públicas criativas e eficientes, que mudem a realidade social. Os EUA e o Brasil têm essas condições.

Por que então os EUA estão atrás de Kerala, e o Brasil atrás de 62 países, muitos deles mais pobres? Porque ambos optaram por enfrentar o social com medidas de mercado, no máximo com algumas políticas assistenciais, como o Food Stamp americano, e sua versão brasileira, o Bolsa Família. Seria diferente se o Food Stamp tivesse sido acompanhado da universalização dos serviços sociais, e se o Bolsa Família tivesse mantido o objetivo do Bolsa-Escola: dinheiro para as famílias com educação de qualidade para suas crianças.

O problema não é de recursos. É de lógica para entender que problemas sociais não se resolvem pela economia, e de vontade política para aplicar os recursos do orçamento público na construção de uma sociedade com justiça social. Pena que, nesses dois países, os intelectuais prefiram o silêncio à construção de um novo modelo de entendimento social, e os políticos prefiram se dedicar a intrigas imediatas, e não aos interesses de longo prazo do povo. Mesmo que os EUA de vez em quando enfrentem um Katrina, e o Brasil viva a vergonha permanente da sua educação, um furacão contínuo sobre as cabeças de nossas crianças, um Katrina eterno.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PT-DF).

N. da R.: Zuenir Ventura volta a escrever neste espaço em outubro.

O problema não é de recursos. Questões sociais não se resolvem pela economia