Título: Tradição, família e fé na Casa Branca
Autor:
Fonte: O Globo, 04/11/2004, Eleiçoes EUA, p. 1

Reeleito, Bush comemora com assessores estratégia de campanha calcada em valores cristãos e política unilateral José Meirelles Passos Correspondente WASHINGTON

Ao realizar uma primeira e rápida avaliação no início da tarde de ontem, no Salão Oval da Casa Branca, espalhando sobre a mesa várias folhas de papel que continham índices e gráficos coloridos, Karl Rove, o principal estrategista da campanha de reeleição do presidente George W. Bush, virou-se para este e o grupo de assessores reunidos ali, e comemorou:

¿ Viram só? Nem guerra no Iraque nem economia. Ganhamos graças a nossa política de segurança nacional e à agenda social de valores tradicionais, a defesa da família e da fé. Os americanos estão mais interessados nesses valores fundamentais: eles não querem casamentos gays ¿ disse ele, segundo o relato feito por Scott McClellan, porta-voz da Casa Branca.

Pouco depois, ao festejar sua reeleição fazendo um discurso à nação perante uma platéia formada por centenas de simpatizantes e funcionários do governo, Bush afirmou:

¿ Os Estados Unidos se pronunciaram!

O presidente agradeceu a confiança dos 59 milhões de americanos (51%) que votaram nele. Mas deu mais ênfase ao apelo aos 55,4 milhões (48%) que apoiaram John Kerry, numa disputa tão corrosiva que praticamente dividiu o país em duas metades acidamente antagônicas:

¿ Hoje quero falar para cada uma das pessoas que votaram em meu oponente. Para tornar esta nação mais forte e melhor, precisarei do apoio de vocês e vou trabalhar para consegui-lo. Farei tudo o que puder para merecer a sua confiança. Um novo mandato é uma nova oportunidade para estender a mão a toda a nação. Quando nos juntamos e trabalhamos juntos, não há limites para a grandeza dos EUA.

Além de reconhecer a divisão dos americanos, cultivada ao longo dos últimos quatro anos de política unilateral e isolacionista, ao fazer tal apelo Bush atendia, também, a um pedido de Kerry. Ao telefonar para ele, às 11h de ontem, para admitir a derrota e lhe dar os parabéns, o senador democrata foi incisivo na curta conversa de cinco minutos:

¿ Falamos sobre essa divisão e eu lhe disse que há uma desesperada necessidade de união, de encontrarmos uma base comum, de nos juntarmos. Espero que hoje possamos iniciar a cura, a cicatrização ¿ disse Kerry.

Três horas depois, o senador fez um discurso em Boston no qual, além de agradecer o apoio dos eleitores, voltou a insistir no tema:

¿ Os EUA necessitam de unidade e desejam uma dose maior de compaixão. Espero que o presidente mostre avanços em relação a esses valores nos próximos anos ¿ disse Kerry.

Em entrevista à rede britânica BBC, o historiador inglês Simon Schama analisou a atual situação dos Estados Unidos:

¿ As eleições mostraram que o país está extremamente dividido, vivendo uma verdadeira guerra civil cultural.

Americanos têm reações extremas ao resultado

A confirmação da vitória de Bush despertou reações extremas de alguns americanos, como Daniel Nusbaum, contador de Gaithersburg, subúrbio de Washington. Casado com uma salvadorenha, ele disse que perdeu as esperanças em seu país:

¿ Vamos nos mudar para El Salvador. Lá há vida mais inteligente ¿ disse ao GLOBO.

Bush terá um poder ainda maior do que hoje, pois o Partido Republicano ampliou sua maioria tanto na Câmara dos Representantes quanto no Senado. E há, ainda, a possibilidade de ele em breve reforçar tal poder com a nomeação de três novos juízes para a Corte Suprema ¿ que se tornaria mais conservadora que a atual.

Bush, que costuma ir para a cama às 22h, ficou acordado até as 4h de ontem, junto da família e de amigos, diante da TV, na Casa Branca, aguardando ansiosamente o resultado da eleição ¿ contou o seu chefe-de-gabinete, Andrew Card. Quando foi dormir ainda não havia uma definição: tinha 254 votos no Colégio Eleitoral e Kerry, 252. Ohio, com 20 votos, cristalizaria a vitória, já que eram necessários 270 votos no colégio.

O presidente dormiu apenas duas horas. Ao acordar, soube que tinha vencido, já que em Ohio estava pouco mais de 136 mil votos à frente de Kerry. Ainda faltavam ser computados cerca de 135 mil, de pessoas que votaram via correio. Como era remota a possibilidade de que cada um desses votos tardios fossem para Kerry, Bush se convenceu da vitória. Em seguida, Card fez um anúncio na Casa Branca:

¿ Estamos convencidos de que o presidente ganhou a reeleição. Sua vantagem em Ohio é, a essa altura, estatisticamente insuperável.

Em Boston, o candidato democrata a vice, John Edwards, sugeriu a Kerry que aguardasse a contagem de todos os votos (o que vai demorar alguns dias). Este, porém, caiu na realidade:

¿ Eu não desistiria dessa luta se houvesse uma chance de que pudéssemos prevalecer. Não haverá votos suficientes para vencer em Ohio e, portanto, não podemos vencer essa eleição ¿ disse Kerry, telefonando em seguida para Bush para lhe dar os parabéns.