Título: As concretudes
Autor: Míriam Leitão/Débora Thomé
Fonte: O Globo, 05/10/2005, Economia, p. 24

O deputado Tom DeLay perdeu o posto de líder do governo Bush por ter sido apanhado com dinheiro não contabilizado de campanha. Uma semana depois, ele foi indiciado pela segunda vez. A primeira, por receber dinheiro ilegal; a segunda, por lavagem de dinheiro. No Brasil, 120 dias depois, não existe um único indiciado. O único deputado cassado foi o que denunciou a corrupção da qual ele tem certeza porque foi um dos beneficiados; três CPIs patinam em molho de tomate com orégano; o corregedor não vai pedir a punição de ninguém e o presidente da República acha que "as denúncias aparecem e não têm concretude, que fica o dito pelo não dito e não existem pedidos de desculpas".

Vamos às concretudes. Roberto Jefferson era deputado da base do governo quando acusou o PT de comprar deputados. O então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, reconheceu que existia "dinheiro não contabilizado" no partido, que ele tinha feito um caixa dois. O publicitário dos Correios e do Banco do Brasil, Marcos Valério, disse que transferiu dinheiro para o PT, foi avalista de empréstimo do partido e que era unha e carne com o tesoureiro. O publicitário do presidente Lula na última campanha, Duda Mendonça, disse que recebeu pagamentos de serviços prestados ao PT ou em dinheiro vivo ou em uma conta no exterior feitos por Marcos Valério. Os guichês do Banco Rural registram pagamentos para vários deputados da base - em volume e freqüência diferentes - mas todos feitos pelas agências de Marcos Valério. O ex-secretário geral do PT, Sílvio Pereira, recebeu um carro importado de uma empreiteira com contratos com a maior estatal do país e só se lembrou de devolver o regalo depois que o fato virou escândalo. Um dirigente regional do PT foi apanhado com dinheiro na cueca. O presidente não viu qualquer dessas concretudes ou ele não acha que elas são suficientemente concretas? E nem se fala aqui, porque não parece ter relação com nada do que foi investigado, do aporte de capital da Telemar na pequena empresa do filho de Lula, em valores totalmente despropositados em relação ao tamanho do negócio e do mercado.

O que está acontecendo no Congresso é claro: estão preparando uma grande piz-za. A massa já está descansando e crescendo. O presidente da primeira das três CPIs instaladas, Delcídio Amaral, teve um encontro recente com o presidente da República quando decidiu permanecer no partido por ser, como disse Lula, a cara do novo PT. Por coincidência, passou 13 dias longe dos afazeres da CPI e voltou dizendo que talvez precise de mais tempo; depois avisou que pode renunciar, acusando vagamente não se sabe quem de impedir a apuração. Os fundos de pensão permanecem protegidos na CPI dos Correios de investigar a suspeita de que eles sejam um dos alimentadores do valerioduto.

O corregedor da Câmara atrasou cada passo do procedimento e agora avisa que vai misturar todos os ingredientes e fazer um relatório só para mandar para o plenário. Na semana passada, o mesmo plenário viu vários dos sacadores das contas de Marcos Valério comemorarem a vitória de Aldo Rebelo na disputa pela presidência da Câmara. A Polícia Federal pede mais prazos para investigar o repasse de dinheiro do caixa dois do PT para os parlamentares da base aliada.

Prepara-se uma enorme pizza de três sabores na Câmara dos Deputados: Correios, Mensalão e Bingos. Eles usaram o truque da hiperatividade para não chegar a lugar algum.

Desde o começo deste processo, vários dos personagens da CPI mentiram muito diante dos parlamentares. Marcos Valério começou contando que os saques em sua conta eram para comprar bois que nunca foram comprados. Depois, disse que eram para pagar fornecedores que jamais apareceram. Delúbio passou o primeiro depoimento naquele mantra de "me reservo o direito de não responder". Depois admitiu que tinha feito caixa dois e contou uma história mirabolante de empréstimos feitos por Marcos Valério para repassar ao PT, que até o deputado petista José Eduardo Cardozo disse que "há fortes suspeitas de que os empréstimos sejam fachadas". O vice-presidente, José Alencar, não acredita nesses empréstimos, baseado em 50 anos de vida empresarial. O ex-secretário-geral, Sílvio Land-Rover Pereira, disse na CPI que nunca tinha ouvido falar do "dinheiro não contabilizado" e dos empréstimos. No último fim de semana, disse à "Folha" que sabia, sim: tanto ele, quanto toda a executiva do partido. Depois negou, mas ninguém mais acredita. Renilda, a distraída mulher de Marcos Valério, não sabia de nada, exceto que o ex-chefe da Casa Civil, José Dirceu, sabia de tudo. O presidente Lula, na primeira vez que ouviu falar sobre isso, não mostrou espanto algum. Justificou o procedimento como coisa que é feita "sistematicamente" pelos partidos.

"Em algum momento, nós temos que ter uma conversa séria neste país", declarou Lula na segunda-feira. Tomara que sim, presidente. Tomara que sim!