Título: FAVELAFOBIA, UM VENENO SOCIAL
Autor: ELIO GASPARI
Fonte: O Globo, 12/10/2005, Opinião, p. 7

Se bobear, o Rio de Janeiro pega de novo a favelafobia, doença da qual padeceu nos anos 60. A idéia é simples: removendo-se a choldra imunda para o diabo que a carregue, a cidade voltará a ser a maravilha que foi no final do século XIX, quando Sara Bernhardt se banhou em Copacabana, ou quando Janis Joplin foi às águas da Barra, no XX.

Expulsaram a escumalha que vivia nos barracos da Lagoa e disso resultou um grande filme. Chama-se ¿Cidade de Deus¿, pois para lá foram as famílias desalojadas por um incêndio que fez inveja a Nero.

Hoje, como nos anos 50, quando surgiram as grandes favelas da Zona Sul, aquelas dos poemas de Elisabeth Bishop, a questão é a mesma. A madame quer diarista? O doutor precisa de contínuo? Mão-de-obra disponível morando por perto não há, e a diária do Copacabana Palace está fora do orçamento da Marinete. Onde é que ela vai dormir?

Transporte público eficiente? Está em falta. Diarista não é só a divina Cláudia Rodrigues, da TV Globo. Foi também Marinete Leite Cerqueira, née Da Silva, irmã do presidente da República, empregada doméstica em Santos no tempo em que a patroa se ofendia quando não era convidada para o casamento da criada.

Atribui-se ao embaixador Otávio Dias Carneiro a seguinte observação: ¿Favela não é problema, favela é solução. Problema é falta de moradia.¿ Vigora no Rio de Janeiro uma lei segundo a qual é proibido construir apartamentos com menos de trinta metros quadrados. Em cidades miseráveis como Nova York e Paris se permitem absurdos semelhantes. Uma quitinete na região do Champs Elysees ou na altura da Rua 50 vale mais que um apartamento de três quartos no Leblon.

Quando o Rio era uma cidade na qual se construíam apartamentos pequenos, Ibrahim Sued, o maior cronista da vida do andar de cima da Cidade Maravilhosa, morava com o irmão no Barata Ribeiro 200, em menos de 25 metros quadrados. Marinete não ganha o suficiente para sonhar com um quarto-e-sala na Glória, mas barraco na favela Santa Marta, tudo bem. Lá as moradias têm vinte metros quadrados, na média.

Uma pesquisa feita nas favelas de São Paulo revelou que 78% dos moradores vivem em casa própria. Percentagem superior à dos edifícios residenciais da orla carioca. O irmão da Marinete foi morar na Granja do Torto prometendo regularizar lotes urbanos, criou o ministério das Cidades, empregou os companheiros e, noves fora a alegria que deu à turma que vive do mensalão dos juros, fez mixaria. As grandes cidades brasileiras gostam cada vez menos de pobres.

A favelafobia é um veneno social. Poucas cidades tiveram tantas favelas removidas quanto o Rio de Janeiro e nenhuma cidade tem tantas favelas quanto o Rio de Janeiro. O Central Park de Nova York já teve quilombo, mas ele se acabou. Falta pouco para que o Leblon volte a ter o seu. Grandes favelas do Rio, como Rocinha, Dona Marta e Alemão, surgiram há mais de quarenta anos. Quem resolveu morar perto delas comprou um risco. Infelizmente, arriscou na cidade errada. Nos anos 90 não havia força humana capaz de fazer com que um bípede branco comprasse um apartamento no Central Park Norte, em Nova York. Sem soluções heróicas, pelo simples exercício do voto e pela administração dos poderes e obrigações do Estado, um terreno desse pedaço, vendido em 1996 por US$560 mil, acaba de ser comprado por US$5,5 milhões. Quem está sendo removido não são os favelados. São os não-favelados.

Esses dois pedaços do Brasil precisam descobrir uma forma de convivência sem a premissa da eliminação do outro. Parece sonho, mas é melhor que pesadelo.

ELIO GASPARI é jornalista.