Título: DUAS VISÕES PARA UMA MESMA AMÉRICA
Autor: Flávio Henrique Lino
Fonte: O Globo, 06/11/2005, O Mundo, p. 39

Rivais, os presidentes dos EUA e da Venezuela apresentam propostas opostas para a integração do continente

Alca ou Alba? Desde que o presidente James Monroe formulou sua famosa doutrina em 1823 colocando o resto das Américas sob o guarda-chuva hegemônico dos Estados Unidos, não têm faltado na História do continente hermanos em armas ¿ literais ou ideológicas ¿ para se contrapor a essa dominação.

Neste fim de semana, a IV Cúpula das Américas, na cidade argentina de Mar del Plata, viu mais um desses embates na figura de seus dois protagonistas: o presidente George W. Bush, proponente de uma integração liderada pelos ¿ e submetida aos ¿ EUA que derrube barreiras comerciais do Alasca à Terra do Fogo; e seu colega-adversário venezuelano, Hugo Chávez, defensor de uma união continental que mantenha Washington à parte. Em pauta, duas visões diferentes de uma mesma América.

Na sua, Bush vê como instrumento principal o que muitos consideram uma atualização da Doutrina Monroe, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

¿ Os grupos dominantes nos Estados Unidos sempre viram a América Latina como uma área dependente. Há pouca diferença entre democratas e republicanos no que diz respeito à formulação de políticas para a região ¿ disse ao GLOBO Enrique Amayo, professor de estudos internacionais latino-americanos na Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), em Araraquara.

¿A América Latina deixou os Chávez e os Fidéis para trás¿

Já Chávez desfralda a velha bandeira anti-yankee transmutada em sua Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), um dos instrumentos com que tenta erigir uma barreira latina à hegemonia americana.

¿ Há quase 150 anos existe reação contra os Estados Unidos e vai continuar havendo enquanto as relações não forem horizontais e igualitárias no continente ¿ avalia o professor Amayo.

No entanto, há quem ache que Chávez está em Mar del Plata com a intenção de fazer relações públicas e jogar conversa fora em seus intermináveis discursos, e não para construir uma alternativa viável para a América Latina. Para Pedro Pequeño, diretor do Programa de América Latina e Caribe do Rollins College, em Miami, o presidente venezuelano está ultrapassado com sua retórica socialista.

¿ O sonho dele para a América Latina era válido nos anos 60 e 70, mas a região já deixou os Chávez e os Fidéis para trás. Quem quer ser como Cuba? Nada funciona lá. E é exatamente isso que Chávez quer ¿ critica ele. ¿ O desemprego é alto na América Latina e é preciso criar empregos. Isso pode acontecer com a abolição das tarifas entre os países.

Segundo o professor Pequeño, o continente terá de aprender a viver em economias unificadas se quiser fazer frente à concorrência de regiões emergentes e de crescimento rápido como a China, a Índia e a Europa Oriental.

¿ Eles estão aí para fazer dinheiro rápido e a América Latina tem de se proteger. Não sei se a Alca é o caminho para isso, embora Bush esteja tentando criar uma linguagem comum na área de comércio. Mas a Venezuela é rica em petróleo e nada tem a perder ¿ argumenta.

Nem todos concordam. Para o professor Williams Gonçalves, da cadeira de relações internacionais na Uerj e na UFF, Chávez procura livrar a Venezuela da dependência dos EUA, seu maior comprador de petróleo ¿ em que se baseia a maior parte da economia venezuelana ¿ diversificando suas estruturas produtivas. E nisso busca novas parcerias, inclusive com o Mercosul, alterando o eixo das relações diplomáticas e econômicas da Venezuela.

¿ Chávez está mexendo com a geopolítica dos Estados Unidos e isso incomoda Washington. Ele faz o que Fidel nunca pôde fazer porque este é o chefe de uma ilha que exportava açúcar e Chávez tem o poder do petróleo ¿ diz Gonçalves.

Espremido entre a grandiosidade contestada da Alca e a provável inviabilidade da Alba, o Mercosul (ainda) aparece pela porta dos fundos como uma alternativa menos pretensiosa que mistura o livre comércio proposto por Bush e o espírito de união latino-americana de Chávez. Só que tudo no reduzido âmbito do Cone Sul do continente.

Apesar de dificuldades, Mercosul não é descartado

Embora tenha sofrido reveses na área econômica e a integração ande a passos de tartaruga, o Mercosul ainda não é descartado pelos especialistas como uma iniciativa fracassada.

¿ Se entendermos o Mercosul como um bloco regional de natureza econômica, nunca vamos assistir a sua decolagem porque se trata de nações periféricas que flutuam com a conjuntura. Mas temos de ver que o Mercosul tem um papel no plano político, garantindo a paz e a estabilidade democrática na região. Ao apresentar-se como ator único, o Mercosul já é um avanço ¿ analisa o professor Williams Gonçalves.