Título: A MEMÓRIA DA CENTENÁRIA AVENIDA CENTRAL
Autor: CESAR MAIA
Fonte: O Globo, 13/11/2005, Opiniao, p. 7

As plantas e os documentos dos projetos da Avenida Central e de seus prédios se encontram sob a guarda da Cia. Docas-RJ. Por maior esforço que faça, ela não tem condições técnicas para abrigar o centenário e mais importante acervo de intervenção urbana da história da Cidade do Rio de Janeiro e do Brasil. A Prefeitura, através de seu Arquivo da Cidade, tem condição técnica para a guarda deste precioso acervo, mas somente o Arquivo Histórico Nacional, no Campo de Santana, dispõe de equipamentos para eventuais restaurações e para fazer cópias inteiras, que permitam socializar o conhecimento e os estudos sobre este acervo.

Os que tiveram ocasião de ver e analisar algumas plantas ¿ como foi meu caso ¿ puderam avaliar a necessidade de se transferir todo o acervo para o Arquivo Histórico Nacional. Para isso, a ministra-chefe da Casa Civil da Presidência da República deveria, com a máxima urgência e até pela proximidade da data em que será comemorado o centenário da inauguração da Avenida Central, coordenar esta transferência, liderando as ações necessárias entre seu ministério, ao qual o Arquivo Histórico Nacional está subordinado, e o Ministério dos Transportes. Em seguida, fazer as cópias dos documentos e disponibilizá-las para reprodução e socialização da informação, ainda dentro deste ano de 2005.

Mas por que o acervo se encontra na Cia. Docas-RJ? Porque a grande reforma urbana do Centro do Rio foi decisão e iniciativa do presidente da República Rodrigues Alves, sublinhada logo em seu discurso de posse. As intervenções foram divididas em duas partes: primeiro, aquelas que eram responsabilidade do governo federal, através do ministro de Obras Públicas Lauro Muller e sua equipe. Este grupo ficou encarregado de realizar as obras do novo Porto do Rio, da avenida que o margeia, depois chamada de Avenida Rodrigues Alves, e da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco. Participaram dos planos e da execução, entre outros, os engenheiros Paulo de Frontin e Pereira Passos, este designado prefeito do Rio de Janeiro.

Foi atribuída à Prefeitura uma lei delegada, que dava todo o poder de intervenção, desapropriação, demolição e construção por atos meramente administrativos, eliminando quaisquer resistências judiciais. O prefeito Pereira Passos ficou responsável pelas obras de reformas de outras ruas do Centro e, principalmente, pela ligação da área do porto ¿ a Prainha, depois Praça Mauá ¿ com o Centro. Para isso, ele alargou até o limite máximo a rua que depois passaria a se chamar Avenida Passos ¿ esta é a razão das suas calçadas tão estreitas ¿- e a Rua Camerino, construindo um corredor qualificado para fazer a ligação. Esta foi a primeira obra a ser inaugurada. A Pereira Passos coube, também, a construção da Avenida Beira-Mar.

Bons tempos aqueles em que as reformas urbanas nas grandes cidades contavam com recursos federais orçamentários, o próprio presidente assumia a responsabilidade da decisão e o ministro de Viação e Obras Públicas executava diretamente a obra, cabendo ao prefeito dar apoio, idéias, parcerias e fazer com o seu orçamento intervenções de menor porte. E, como sempre, o que valia era a decisão política tomada. Aliás, nos anos 70 do século XIX, muitos engenheiros, arquitetos, políticos e setores da sociedade defendiam que as grandes intervenções urbanas e um novo centro para o Rio se localizassem onde é hoje Vila Isabel e Andaraí, deixando o antigo centro quase que somente com funções portuárias. Para isso, durante o governo do Visconde de Rio Branco, o Ministro João Alfredo ¿ depois senador e primeiro-ministro responsável pela lei de abolição dos escravos ¿ chamou o jovem engenheiro Pereira Passos, encarregando-o de desenhar o novo bairro, Vila Isabel.

Num projeto parecido e que antecipou o da Avenida Central, Passos desenhou uma rótula de acesso, um amplo ¿boulevard¿ ¿ depois chamado de 28 de setembro, data da Lei do Ventre Livre de 1871 ¿ com suas retilíneas e elegantes transversais, que terminava numa grande praça, a hoje conhecida Barão de Drumond. As semelhanças dos dois projetos são muito grandes. E a inspiração veio da experiência vivida por Passos na grande reforma de Paris feita por Haussman, prefeito designado pelo imperador Napoleão III, com amplos poderes delegados para decidir por atos administrativos. O maior opositor da Reforma de Paris foi o deputado e escritor Victor Hugo, depois exilado por Napoleão III.

Todas as mais importantes intervenções urbanas no Centro do Rio ¿ o prefeito Barata Ribeiro demolindo o grande cortiço Cabeça de Porco para dar lugar a uma rua e a um túnel, hoje João Ribeiro; a reforma de Pereira Passos; a intervenção de 1922 no Morro da Misericórdia e no Castelo, realizada por Carlos Sampaio para o centenário da Independência; e as reformas do prefeito Henrique Dodsworth, quando surgiram as avenidas Presidente Vargas e Brasil ¿ implicaram inúmeras demolições, sem que houvesse qualquer preocupação com a realocação daquelas pessoas ou com o seu acesso aos serviços públicos.

Bem, mas esta é outra história mais que centenária e que não deixa tão bem os sanitaristas da época, como o comprovam os registros posteriores.

CESAR MAIA é prefeito do Rio de Janeiro.