Título: FARINHA DO MESMO SACO?
Autor: Fernando Henrique Cardoso
Fonte: O Globo, 04/12/2005, O País, p. 16

O dinheiro do mensalão jorrou sem que haja doadores privados¿

Nas últimas semanas vários comentaristas têm interpretado os acontecimentos relacionados com as denúncias de corrupção como se fossem a ante-sala da disputa eleitoral de 2006. Leitura perigosa. Primeiro, porque dificilmente alguém ganha eleições só no aspecto negativo das denúncias. Para convencer o eleitorado será preciso propostas. Segundo, porque a desqualificação do mérito intrínseco das denúncias e sua redução a interesses eleitoreiros embaça o foco, dando a impressão de que a corrupção sempre existiu e de que todos os governos fazem o possível e o impossível para encobrir seus pecados. Seriam, portanto, farinha do mesmo saco.

Recordo que na campanha para a Prefeitura de São Paulo, em 1985, esse era o argumento usado ¿à esquerda¿ para justificar a votação no PT: Jânio e eu seríamos farinha do mesmo saco. Por trás da argumentação havia o pressuposto de que sobrava um único partido, altaneiro, verdadeiro redentor da moral pública e benfeitor dos mais pobres. Hoje, com tanto descalabro praticado pelo mesmo partido, o argumento perdeu força. Fica, entretanto, subconscientemente, uma espécie de absolvição implícita: Lula e o PT teriam simplesmente feito o que todos fazem.

Chamou-me a atenção, especialmente, um comentário recente em O GLOBO de Zuenir Ventura, que leio sempre com prazer e proveito. Tomando de empréstimo antigas declarações que dei a Tereza Cruvinel protestando contra denúncias que assolavam meu segundo mandato, Zuenir diz que eu teria usado os mesmos argumentos e o mesmo esperneio que Lula e seu governo repetem. Ao igualar formalmente os dois momentos, lá se vai o conteúdo. Eu protestava contra o conluio entre alguns procuradores e setores da oposição que faziam declarações à imprensa insinuando escândalos sem prova alguma. Com base nelas os procuradores abriam inquéritos e as oposições pediam CPIs. Foi assim com as acusações do ¿caso Eduardo Jorge¿, hoje reconhecidas como injustas pelos próprios acusadores de ontem, assim como com as do suposto ¿escândalo¿ da compra de votos para a emenda da reeleição cuja apuração, novamente agora, com CPI aberta, não avançou simplesmente porque, se compra houve (e não tenho elementos para afirmar ou negar), não se deu no âmbito do governo federal nem foi o PSDB quem a patrocinou. É bom não esquecer que a reeleição beneficiaria também governadores e prefeitos, todos interessados nela.

Que dizer do ¿escândalo do Sivam¿, projeto decidido pelo governo Itamar, cantado hoje como glória nacional, depois de submetido ao crivo de CPI instalada na Câmara, que concluiu serem infundadas as acusações e reconheceu a prontidão de meu governo em sanar as incorreções processuais identificadas? E a ¿pasta rosa¿, episódio anterior a meu governo que, virava e mexia, era citada como prova contra mim?

De todos os ¿escândalos¿ fabricados pelo PT, que quis, e ainda quer, transformar infâmias em denúncias, o mais patético é o da privatização da Telebrás. Sem ela o governo do Brasil (meu ou de Lula) não se poderia gabar de o número de telefones celulares ter saltado de 800 mil para 81 milhões, nem de haver acesso crescente aos computadores e à internet graças à expansão da telefonia fixa. Além de alegações sem base a partir de escutas telefônicas ilegais, nada de concreto foi proposto pelo Ministério Público que sustentasse incorreções no processo de privatização.

As ¿denúncias¿ não passavam de manobras eleitoreiras, desmascaradas à época em folheto publicado por Eduardo Graeff, que se encontra no site do PSDB na internet. O que não impede o PT de voltar a elas, ainda agora em seu site, sem responder ao desfiar de fatos de corrupção ocorridos no governo atual, articulados por gente do partido, comprovados em CPIs que não são ¿da oposição¿, mas do Congresso.

O certo é que o PT e alguns de seus aliados não aceitam que na democracia prevaleça a vontade da maioria. Derrotado seu ponto de vista na votação congressual, vão às ruas e batem às portas dos tribunais para inviabilizar as decisões da maioria. E, quando não há outro remédio, vão às mentiras, tentando transformar diferenças de visão política em uma luta entre os bons, que são eles, e os maus, que são os que deles ganharam.

Era a isso que eu chamava de expedientes fascistas. Será o caso atual? Foi o PSDB quem denunciou o mensalão? E o uso de verbas públicas ou dinheiro do Banco do Brasil para alimentar as contas de campanha do PT são infâmias? Será que o mensalão é mote de canção ou nosso presidente defende-se não vendo o que ocorre a seu redor e, quando despertado por terceiros, minimiza fatos e toma o partido do ¿nosso¿ (dele) Delúbio? Não, meu caro Zuenir, não se trata da mesma coisa. Nem tudo é farinha do mesmo saco.

Tampouco é certo, como ouvi de outro comentarista que respeito, Franklin Martins, que pelo menos uma coisa ficou clara: caixa dois na campanha eleitoral é inaceitável. É sim, inaceitável. Mas o caso é mais grave. Tem a ver com corrupção, pois o dinheiro do mensalão jorrou sem que haja doadores privados. Pior: veio por intermédio de uma rede coordenada pela cúpula do partido do governo, extraído parcialmente de fontes públicas ou graças a facilidades obtidas no setor público. Parte desse dinheiro não se usou em campanha alguma. Serviu para aliciar maiorias eventuais no Congresso.

A leniência com tantos deslizes não pode ser aceita. O fundamento ¿moral¿ deles se assenta na visão antidemocrática de que o único caminho para a salvação do país e do povo é o fortalecimento do partido que se crê intrinsecamente superior, devendo-se manter no poder a qualquer preço. Fosse corrupção tradicional já seria inaceitável. Mas é pior, há por trás dela motivação política e ideológica que levou pessoas, muitas das quais, creio, pessoalmente dignas, a patrocinar o maior processo de destruição de valores republicanos já havido em nossa história.

É por isso que não se pode condescender nem igualar tudo a vícios comuns a qualquer poder e a todos os poderosos. Sob pena de nos tornarmos coniventes, não com a corrupção, mas com a destruição dos valores democráticos.