Título: LINHA VERTICAL
Autor: CRISTOVAM BUARQUE
Fonte: O Globo, 10/12/2005, Opiniao, p. 7

Há políticos que se perguntam ¿como fazer¿; outros perguntam primeiro ¿o que fazer¿. Estes são os que desejam mudanças, são os líderes, estadistas. Nem todo político do segundo grupo é de esquerda, mas todo aquele do grupo do ¿como fazer¿ é um conservador.

JK fazia parte do segundo grupo: primeiro perguntou-se ¿o que fazer¿ com o Brasil rural e agrícola, e optou pela industrialização; só depois se perguntou ¿como fazer¿; o governo Lula faz parte do primeiro grupo, pergunta ¿como fazer¿ para manter o mesmo rumo, sem qualquer inspiração para mudar os destinos do Brasil. Um exemplo disso é a criação da Bolsa-Família sobre os escombros da Bolsa-Escola e de projetos de transferência de renda criados no governo Fernando Henrique. Lula perguntou ¿como fazê-los¿ mais eficientes, juntando-os, e não ¿o que fazer¿, ou qual Brasil criar com eles.

A Bolsa-Escola acenava na direção de um Brasil diferente, com educação. A Bolsa-Família mantém o Brasil no mesmo rumo, com uma pequena transferência de renda de R$80 por mês para cada família pobre.

Essa classificação se aplica também aos formuladores de políticas sociais. Alguns se perguntam ¿de quanto¿ precisa um pobre para sair da pobreza, e outros perguntam do ¿que¿ ele precisa. No primeiro grupo estão aqueles que separam os pobres dos ricos por uma linha horizontal: consideram pobre quem tem renda de até R$3,30 por dia. A quase totalidade dos economistas e dos políticos do tipo ¿o que fazer¿ vêem a realidade social sob a ótica da renda ¿ inclusive no governo Lula ¿ e definem a pobreza em termos da quantidade de moedas no bolso do pobre, ou do tamanho da esmola recebida por dia.

Essa visão apresenta um duplo equívoco, moral e lógico. É imoral porque traça a linha horizontal da pobreza com base em um valor absurdamente baixo. É ilógica porque não é possível retirar uma família da situação de pobreza com programas de transferência de renda. Não há recursos para transferir renda em valores suficientes, não há possibilidade de um crescimento econômico que crie os empregos necessários para a mão-de-obra sem qualificação que geralmente caracteriza os pobres.

O lógico seria pensar não em linha horizontal, que associa pobreza ao nível de renda, mas sim em uma linha vertical da pobreza, que separe os pobres dos não-pobres de acordo com o acesso a bens e serviços essenciais ¿ educação, saúde, água, esgoto, coleta de lixo ¿ que não podem ser comprados pela população pobre, qualquer que seja a transferência de renda. Esses serviços serão públicos, ou não serão universais.

Por isso, as estatísticas que mostram a redução da pobreza por causa do ligeiro aumento na renda dos pobres pouco significam. O verdadeiro salto não está em colocar os pobres acima da linha horizontal de renda, graças a alguns centavos a mais por dia, mas sim em fazê-los avançar para o lado na linha vertical que separa quem tem de quem não tem acesso aos bens e serviços essenciais.

O caminho da superação da pobreza está na execução de programas de ¿incentivos sociais¿, desenhados para garantir remuneração aos pobres, empregando-os na produção dos bens e serviços de que eles próprios necessitam para sair da pobreza: gera-se renda e ao mesmo tempo aumenta-se a oferta daquilo que caracteriza a exclusão. A bolsa-escola é um exemplo: emprega-se a mãe para garantir a freqüência dos filhos à escola. A bolsa sustentava a vida, mas era a escola que permitia subir na vida, sair da pobreza, graças ao acesso à educação. Um intenso programa de emprego de mão-de-obra pobre, dentro dos limites da responsabilidade fiscal, para produzir, construir e oferecer bens e serviços essenciais, seria o caminho para a redução da pobreza. Mudar os pobres de lado da linha vertical de acesso, não apenas de nível na linha horizontal de renda.

Mas para que isso ocorra, é preciso também passar os políticos e dirigentes de um lado para o outro, trazer aqueles que se perguntam ¿como fazer¿ para o lado dos que perguntam ¿o que fazer¿, e que sabem ¿o que fazer¿.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).