Título: República encolhida
Autor: Míriam Leitao
Fonte: O Globo, 11/12/2005, Economia, p. 38

Foi um ano difícil. Um dos mais difíceis da nossa História. Na economia, a chance de crescimento encolheu. Na política, o país viveu um trauma devastador com repercussões no presente e no futuro. O PT errou; antes, durante e depois da crise. O presidente Lula encolheu; por não ter respostas adequadas, por demorar a reagir, por pensar tanto em reeleição.

No começo do ano, José Genoino era presidente do PT; José Dirceu, o ministro mais poderoso do país; Delúbio Soares e Silvio Pereira, dois condestáveis que entravam em qualquer gabinete e usavam até sala de reunião no Planalto. O ano termina com Genoino no ostracismo, José Dirceu cassado, Delúbio réu confesso de vários crimes, Silvio Pereira esmagado por um Land Rover promíscuo.

O núcleo duro do governo não apenas encolheu; desapareceu. O ministro Palocci termina 2005 enrolado em denúncias do seu passado e desautorizado internamente pela ministra Dilma Rousseff que, agora, diz quem fica ou deixa de ficar no governo. O ministro Gushiken terminou o ano subministro e com a crise mordendo seus calcanhares.

O PT se apresentou durante 20 anos como o único puro entre pecadores. Descobriu-se ao longo deste ano sua vasta lista de pecados: fez caixa dois, recebeu dinheiro de origem escusa, fez remessa ilegal ao exterior, fez declaração falsa à Justiça Eleitoral e foi à bancarrota. Foi quem mais encolheu no ano.

A Polícia Federal invadiu a sede do PTB, mas não fez o mesmo com o partido cujo tesoureiro disse publicamente que usara ¿dinheiro não contabilizado¿. A Receita Federal precisou de seis meses para pedir informações a um partido que confessara crime fiscal. As duas instituições também encolheram por não saberem a diferença entre Estado e governo. Elas deveriam servir ao Estado. O Banco do Brasil encolheu por ter sido flagrado em práticas condenáveis e toscas para favorecer o partido do governo. Começou 2005 dizendo perseguir modernas práticas de governança corporativa, acabou o ano enredado em histórias que não consegue explicar.

A Procuradoria Geral da República decidiu manter Marcos Valério em liberdade contra todas as evidências de que ele usava seu tempo livre para queimar notas frias, instruir testemunhas e obstruir a Justiça. Encolheu, também, a Procuradoria.

O presidente da República encolheu porque mostrou que não sabe enfrentar crises. Ele deu respostas tardias, insuficientes e contraditórias. A lista dos argumentos que usou em sua defesa é estranha porque não se pode traçar um fio lógico entre eles. Disse que a crise não era com ele, mas apenas ¿problema do partido¿, depois justificou o mal feito dizendo que caixa dois era coisa feita ¿sistematicamente¿, depois disse que foi traído, mas nunca revelou por quem; depois, que tudo era culpa da imprensa, que acusa sem provas; denunciou uma suposta conspiração da direita e, por fim, fixou-se na esdrúxula tese de que nada fora provado contra José Dirceu e que seu governo sofreu uma devassa sem que nada fosse encontrado.

Pior do que as trapalhadas nas quais o governo e o partido do governo se meteram é o reflexo da crise nos cidadãos e na fé que se pode ter nas instituições. Ao criar expectativas inatingíveis e se afundar numa crise pior do que a prevista pelo mais pessimista dos brasileiros, o PT fez mal ao país e à política. Tivesse feito uma autocrítica decente, tivesse parado de culpar outros por seus erros, tivesse procurado sinceramente a verdade, que ainda hoje esconde de seus militantes, o PT teria reduzido o prejuízo coletivo da crise.

O STF também encolheu. Com decisões como a de soltar Maluf com o argumento de que o ministro apiedara-se de sua sorte de estar preso com o filho, ou a de soltar o coronel Pantoja, do massacre de Eldorado dos Carajás, e, por fim, ao ser presidido por um ministro que está com um pé e a cabeça na disputa político-eleitoral do ano que vem.

A perspectiva de crescimento da economia encolheu durante o ano. Era para o país crescer 4% e vai ter que se contentar com dois e pouco. Apesar disso, a economia produziu um volume considerável de notícias boas que serviu como um colchão amortecedor da pesada crise política.

Para 2006, há chance de um ano melhor na economia, baseado nos seguintes fatos: a inflação deve ficar sob controle e a queda dos IGPs fará com que, pela primeira vez desde 99, os preços administrados puxem os índices para baixo. A queda dos juros, que já começou, pode prosseguir durante o ano criando um ambiente mais favorável ao crescimento e ao consumo. Os sólidos indicadores externos, o fato de o Tesouro ter acumulado reservas para fazer frente a compromissos externos, o bom quadro internacional persistindo ao longo de 2006 podem produzir um ambiente de crescimento com inflação baixa.

A disputa política, porém, pode ser selvagem e incerta no próximo ano. O governo está piscando para o populismo econômico e alimentando a divisão do país ao inventar uma conspiração inexistente de seus adversários. Não será um ano fácil. Mas que ninguém o dê por perdido. A democracia oferece aos eleitores a chance da renovação do contrato entre governantes e governados a cada novo ciclo político. A vida oferece às pessoas a chance de renovação da esperança a cada novo ano.

VOU SAIR por umas semanas para férias que foram atropeladas pela crise no meio do ano. Flávia Oliveira ficará de plantão neste espaço, com a ajuda da sempre diligente Débora Thomé. Ficarei torcendo por uma boa virada de ano para todos nós.