Título: DIRETO COM O POVO
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 13/12/2005, O País, p. 4

O presidente Lula prepara-se para a reeleição com todos os instrumentos de que dispõe, utilizando-se não apenas de programas assistencialistas como o Bolsa Família, como acionando ao mesmo tempo dois mecanismos de distribuição de renda que afetam diretamente o dia-a-dia dos cidadãos mas impactam os custos do Estado: o aumento real do salário-mínimo, que eleva os custos das aposentadorias e dos salários dos servidores em todo o país, e o reajuste da tabela do Imposto de Renda. É a clássica utilização da política macroeconômica com objetivos político-eleitorais, que a teoria econômica denomina ¿ciclos políticos de negócios¿.

Apesar da reclamação das centrais sindicais, o governo deve propor mesmo o aumento do salário-mínimo para R$350, um reajuste real acima de 11%, o maior já dado no seu governo. Diferentemente do início deste ano, quando a oposição tentou emparedar o governo propondo um salário de R$384, no próximo ano eleitoral quem está puxando o teto para cima é o próprio governo, e seus sindicatos aliados.

Em outros tempos, a equipe econômica teria força para impedir os dois aumentos simultâneos, mas desta vez é possível que perca a parada, ainda mais depois da aprovação pelo diretório nacional do PT de uma moção pela mudança da política econômica. Embora dividido e tendo perdido por apenas um voto, o partido posicionou-se contrariamente à continuidade da política cautelosa do ministro Antonio Palocci, numa confirmação de que o ano eleitoral será também de muitas pressões políticas sobre o governo Lula.

Muitos petistas ligados ao presidente Lula, como o assessor especial Marco Aurélio Garcia, votaram pela crítica ao modelo econômico, ele que já dissera que o aumento dos gastos correntes ¿é vida¿ que não pode ser cortada. Os aumentos dos gastos com salário-mínimo e o reajuste da tabela do Imposto de Renda são dois fatores que aumentam os gastos correntes do governo de maneira imediata, e provocam reflexos até mesmo nos setores informais da economia, causando inflação e desemprego a médio prazo. Mas o efeito no crescimento do PIB, e na melhoria imediata da vida dos que permanecem empregados, recompensa eleitoralmente.

Na proposta de Orçamento para 2006 que está no Congresso, o salário-mínimo foi fixado em R$321, e as centrais sindicais querem um reajuste para R$400, o que equivaleria a um aumento real acima de 25%, o maior reajuste de salário-mínimo dos últimos dez anos. Em maio de 1995, logo após a implantação do Plano Real, o governo Fernando Henrique deu um aumento real para o salário-mínimo de mais de 22%, que foi responsável por cerca de 40% da queda da pobreza registrada na ocasião, tamanho é o impacto direto do salário-mínimo na vida do país, especialmente no que os economistas chamam de ¿cauda inferior¿ das classes mais pobres. Esse aumento de agora, mesmo o de 11% que o presidente quer dar, complementando o aumento real de cerca de 9% dado em maio deste ano, teria impacto grande, pois a inflação sob controle potencializa seus efeitos.

Em fase de muda, a nova direção do PT classificou a derrota que impôs ao presidente Lula de ¿deslocamento das forças internas¿, na peculiar definição do presidente do partido, deputado Ricardo Berzoini ¿ que desempatou contra o governo. Uma linguagem metafórica que lembra os ¿recursos não contabilizados¿ do ¿nosso¿ Delúbio, e reafirma a situação estranha do PT, que precisa se expressar por metáforas para encontrar uma posição de equilíbrio entre a tentativa de recuperar o espaço político perdido na militância, e não perder o contato com Lula, sua única referência com respaldo popular ainda mantido, embora declinante.

Provavelmente o presidente Lula terá uma conversa franca com a direção do PT para tentar retomar o controle do partido, e poderemos ver nos próximos meses o presidente reforçando a impressão de que pensa mesmo em não se recandidatar. Assim como em 2002 impôs a ampliação do espectro das alianças políticas para concorrer pela quarta vez ¿ alianças que se mostraram eficazes para vencer, mas desastrosas para governar ¿ Lula agora, mesmo batido pelos reveses dos últimos tempos, continua com a faca e o queijo nas mãos para impor condições a seu partido, pois a única força que ainda resta para uma eventual reeleição é sua ligação com as massas populares, turbinada pelo uso dos mecanismos próprios do governo.

Vai ficando cada vez mais claro que Lula se elegeu presidente sem o PT, o que ficará mais patente no próximo ano se conseguir, apesar dos pesares, se reeleger. O sociólogo Cândido Mendes, por exemplo, acha que o presidente tem que testar até o limite dos riscos calculados sua ligação com o povo. Esse é o sentido de seu mais recente livro, ¿Lula depois de Lula¿, onde defende a tese de que o presidente deveria fazer uma manobra ¿essencialmente política¿ de usar um instrumento democrático como o plebiscito para reforçar a idéia da reeleição e buscar, através da consulta popular, anular os efeitos da crise política. Cândido Mendes defende a tese de que Lula não é carismático, pois não manipula as habilidades de encantar as massas, e sim faz parte delas. Quanto mais parece repetitivo ou vazio à classe média, mais se aproxima das classes baixas.

Sua tese é que o presidente, independentemente do PT, manteve ¿a simbologia do operário-presidente¿ e conservou ¿o imaginário do Lula-lá¿. Mesmo sendo improvável que Lula venha a arriscar uma manobra desse tipo, ou que tenha perdido a hora de fazê-lo, é possível que venhamos a ver, antes da confirmação de que é mesmo candidato à reeleição, o presidente num périplo pelo país para checar pessoalmente os programas sociais que serão seu esteio político na campanha eleitoral. Lula não é Chávez, nem o Brasil é a Venezuela. Muito menos a oposição brasileira é golpista. Mas o que resta a Lula é seu contato com o povo.