Título: CONTRA O ELEITOR
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 16/12/2005, O País, p. 4

Está claro que a absolvição do deputado Romeu Queiroz, do PTB, é uma senha para que outros deputados envolvidos no mensalão também o sejam, uma atitude corporativista para proteger os acusados e os muitos outros que, embora não apanhados com a boca na botija, se utilizaram do mensalão ou do caixa dois do Delúbio Soares, tanto faz.

Mas a reação da opinião pública está sendo tão devastadora que possivelmente o próximo da lista a ir ao plenário, mesmo que seja o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha, será cassado para aplacar a ira popular. A luta agora vai ser para saber quem será o primeiro da lista do recesso a enfrentar o julgamento de seus pares depois da vergonhosa absolvição da noite de quarta-feira.

Sabe-se que muitos mais do que os 13 deputados indiciados no Conselho de Ética estão envolvidos nesse esquema de corrupção, apenas foram mais espertos que seus pares e não deixaram pistas. O deputado Queiroz, que recebeu R$350 mil alegadamente para financiar campanhas petebistas e teve até um dinheiro depositado "equivocadamente" em sua conta, tinha todas as condições de ser cassado, e, no entanto, safou-se devido ao bom trânsito que tem dentro da Câmara.

Beneficiou-se também do momento em que seu nome foi a plenário, a última sessão do ano, nas proximidades dos feriados de Natal e Ano Novo, quando os espíritos estão desarmados e, principalmente, desprevenidos. Os deputados parecem gostar de testar até onde vai a pressão da opinião pública, para ver qual o campo de ação de que podem desfrutar sem cair na desgraça dos eleitores.

Não lhes basta serem os que têm a avaliação mais negativa entre todas as instituições públicas do país, não lhes assusta a possibilidade de uma reação tão vigorosa que erradique do meio político todos os envolvidos nas falcatruas que foram desvendadas publicamente nos últimos seis meses, diante de uma opinião pública escandalizada e impotente.

A conta desse festival de impunidade vai também para o presidente Lula, que teve grande responsabilidade na instalação do clima de que nada foi provado até agora pelas CPIs. Ao repetir a cantilena de que o deputado Roberto Jefferson foi cassado porque não conseguiu provar a existência do mensalão - o que não é verdade - e garantir repetidas vezes que nada ficara provado além do caixa dois habitual, o presidente da República incentivou os políticos de sua base aliada a absolverem os corruptos do mensalão, que não existe para o presidente.

Nada mais sintomático do que a conta do próprio Romeu Queiroz, que se jactou de ter recebido pelo menos 50 votos de petistas no julgamento que o absolveu. O fato é que existe na Câmara um grande acordo para livrar, se não todos, pelo menos a grande maioria, da cassação de mandato, o que configura uma acintosa confrontação com a opinião pública, além de denotar uma falta de critério perigosa para a democracia.

Até a absolvição de Romeu Queiroz, havia uma certa lógica no comportamento do plenário da Câmara: os deputados que a Comissão de Ética condenasse, eram condenados por seus pares. O deputado Sandro Mabel, o primeiro a ser absolvido pelo plenário da Câmara, o fora também na Comissão de Ética, por falta de provas que o ligassem ao mensalão. Essa lógica foi quebrada, e agora não há mais parâmetros para as votações seguintes.

Se é verdade que cada julgamento depende da provas, mas também da pessoa envolvida, configura-se um critério corporativo inaceitável em decisões desse tipo. Uma decisão política pressupõe a análise da atuação política de cada deputado envolvido, não pela simpatia que granjeia entre seus pares, mas pelos fatos que indiquem ser ele potencialmente capaz, ou não, de cometer os atos que lhe são imputados, mesmo sem provas.

No caso de Queiroz, até mesmo prova havia, pois parte do dinheiro sacado no Banco Rural foi parar na sua conta bancária pessoal, o que torna caricato e ridículo a desculpa de que houve um "engano" no depósito. Se o ex-deputado e ex-ministro José Dirceu foi cassado pela convicção da maioria da Câmara de que fora o chefe do esquema do mensalão implantado na Câmara, então todos os que receberam o dinheiro, fosse a que título fosse, deveriam ser punidos com a perda de mandato.

Se receber dinheiro ilegal, mesmo que seja "apenas" de caixa dois, não representa crime eleitoral passível de punição com a cassação, então o chefe do esquema que distribuiu o dinheiro também não deveria ter sido cassado.

Bastou o resultado da absolvição do deputado Romeu Queiroz sair para que passassem a circular pela internet diversos protestos, e a campanha pelo voto nulo voltasse com toda a força. A absolvição do deputado veio no mesmo dia em que o Congresso havia anunciado a convocação extraordinária que custará perto de R$100 milhões aos cofres públicos, devido ao pagamento em dobro do salário quando os parlamentares trabalham durante o recesso. O que também provocou reações da opinião pública nacional.

O presidente da Câmara, Aldo Rebelo, que relutou em convocar a Câmara exatamente temendo o desgaste maior ainda dos deputados diante da opinião pública, já anunciou que um dos temas a serem votados no recesso é o decreto legislativo do deputado Raul Jungmann, vice-líder do PPS, que acaba com esse pagamento dobrado. E também a redução do recesso parlamentar pela metade, de 90 para 45 dias.

São medidas saneadoras que podem ajudar a melhorar a imagem do Congresso. Mas se a sensação de impunidade e corporativismo for confirmada por novas absolvições de deputados envolvidos no mensalão, provavelmente a taxa de renovação do Congresso em 2006 será alta.