Título: BECO SEM SAÍDA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 03/01/2006, O País, p. 4

Se o melhor que o presidente Lula tem a fazer diante das acusações de corrupção que atingem seu governo é o que apresentou na entrevista ao ¿Fantástico¿ no domingo, então ele está em maus lençóis. Alegar que só pode saber do que acontece nos bastidores do governo que supostamente comanda se alguém lhe contar ou denunciar, é um atestado de incompetência incomensurável, para usar a qualificação que ele dedicou ao ¿erro¿ do PT. E não lhe tira a culpa.

Supondo que o seu chefe da Casa Civil, o então todo-poderoso José Dirceu, fosse realmente autônomo em suas ações políticas, ou até mesmo admitindo que o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, fosse autônomo em relação a José Dirceu, só mesmo um presidente descolado da realidade não notaria que sua base de sustentação no Congresso havia inchado excessivamente. Ou não estranharia a presença constante do tesoureiro do partido no Palácio do Planalto.

Para um presidente que se recusou a entregar parte do primeiro Ministério ao PMDB, no começo do governo, sob a alegação de que não queria aprofundar negociações com políticos fisiológicos, logo depois dizer que daria um cheque em branco para o presidente do PTB, Roberto Jefferson, é uma mudança de posição tão radical que não é possível que o próprio Lula não tenha participado das negociações, ou pelo menos não tenha sido comunicado delas.

Quanto ao pedido de desculpas de que ele se considera devedor, é preciso lembrar ao presidente que é ele quem deve desculpas ao povo brasileiro. Senão por ter comandado toda esse esquema de corrupção que está sendo desvendado pelas CPIs, pelo menos por não ter notado nada do que se passava à sua volta. Um presidente da República é responsável, em última instância, pelo que acontece no governo, de bom e de ruim. Não vale se auto-elogiar pelos bons resultados e culpar outros pelos erros.

Mas o que torna inverossímil a alegação de que nada sabia é a história de Lula no PT, partido que ele ajudou a fundar com seu carisma de líder operário, e de cuja direção nunca saiu. Há diversos relatos de que Lula foi avisado pessoalmente por vários companheiros de partido ¿ Paulo de Tarso Venceslau e Cesar Benjamim são dois deles ¿ sobre falcatruas que estavam sendo cometidas pelo PT nas prefeituras que administrava, já pelos anos 90 do século passado, e Lula nunca moveu uma palha para esclarecer as denúncias, ou mudar os procedimentos petistas.

A entrevista revelou duas importantes facetas da estratégia de Lula para a campanha eleitoral. Pela primeira vez ele se referiu à data fatal de junho como o prazo que tem para decidir se vai se recandidatar ou não. De fato, pelo calendário eleitoral confirmado ontem pelo Tribunal Superior Eleitoral, o presidente Lula tem até o dia 30 de junho para se anunciar como candidato, caso decida concorrer à reeleição. O último dia de junho é a data limite para os partidos realizarem convenções, que podem começar no dia 10 de junho, tendo os partidos até 5 de julho para registrarem seus candidatos no TSE.

Como presidente da República não precisa se desincompatibilizar do cargo para concorrer à reeleição, Lula poderá manter a postura de candidato, comparecer às inaugurações, fazer comícios, sem estar legalmente impedido por ser candidato. Embora as restrições legais só valham a partir do registro da candidatura, em julho, moralmente ele ficará impedido de atuar como candidato assim que anunciar que o será.

Mantendo a dúvida, ele tem ainda outra vantagem: poderá acompanhar as pesquisas eleitorais, e avaliar melhor suas chances até o último momento. Essa estratégia pode ser interessante para ele, mas não é para o PT, o partido que será o suporte de sua eventual candidatura. Se Lula finalmente decidir não se candidatar perto de junho, o PT terá pouco tempo para organizar a campanha de seu substituto.

Mais que isso: alguns dos possíveis candidatos terão que se desincompatibilizar até o último dia de março, mesmo sem saber se Lula será ou não candidato. O ministro Ciro Gomes, por exemplo, terá que deixar o Ministério da Integração Nacional e ficar aguardando a decisão de Lula para saber se será candidato a vice-presidente numa chapa com o PT, a presidente pelo PSB, a governador do Ceará ou a senador. Outros possíveis candidatos a presidente pelo PT são o senador Aloizio Mercadante e o ex-ministro Tarso Genro.

Mercadante é candidato ao governo de São Paulo, e terá sua disputa com Marta Suplicy atrapalhada por essa indecisão. Tarso Genro não tem mandato nem cargo no governo, mas não poderá voltar ao Ministério na próxima reforma se for um eventual regra-três de Lula no PT. Mas o presidente, paradoxalmente, não parece muito preocupado com o futuro do partido que será sua principal sustentação em uma eventual campanha eleitoral.

As críticas abertas que Lula fez ao PT, mesmo que tenha, com uma metáfora canhestra, tentado isolar os ¿erros¿ do PT em uma pequena parte da ¿família petista¿, certamente não ajudam a recuperar a imagem do PT, nem o ânimo dos petistas, em uma campanha eleitoral. Como os militantes vão erguer a bandeira vermelha do PT se o próprio candidato diz que o partido ¿vai custar muito a recuperar a credibilidade¿?

O fato é que Lula está aparentemente em um beco sem saída: se defender o PT, perde mais ainda a popularidade entre os não-petistas que ajudaram a elegê-lo. Se criticar o PT, está ajudando a afundar o partido pelo qual concorrerá. É a mesma situação ambígua do PT, que critica a política econômica de Lula, mas terá que basear sua campanha nos eventuais êxitos dela. Se for candidato, Lula contará exclusivamente com seu carisma pessoal e com os resultados de seu governo. Para o bem ou para o mal.