Título: SEM QUEBRAR OVOS
Autor: Zuenir Ventura
Fonte: O Globo, 11/01/2006, Opinião, p. 7

É sempre curioso ver o Rio e o Brasil através do olhar de um estrangeiro, de preferência francês, já que eles foram dos primeiros a nos visitar e a nos cobiçar, como a expedição de Villegaignon, que aqui aportou em 1555 para fundar uma França Antártica. Agora, há exatos 450 anos, na virada de 2005, encontro um outro francês deslumbrado pelo Rio. É um jornalista que aqui morou como correspondente, tem um apartamento em Ipanema e, embora seja diretor de uma tv de Paris, volta sempre que pode, às vezes por alguns dias.

Apesar da intimidade com o país e a cidade, mesmo falando muito bem o português, ele não consegue decifrar alguns de nossos mistérios, como o do réveillon, que provoca o espanto de sempre: como a "capital da violência" é capaz de reunir dois milhões de pessoas na maior tranqüilidade? Em Paris isso não seria possível sem o risco de incidentes e tumultos. "Em compensação", é a sua vez de nos dar inveja, "se acontecesse na França um escândalo como o do valerioduto, dois milhões de pessoas sairiam às ruas para protestar e exigir punição".

Ainda não estava escancarado na mídia o episódio da convocação extraordinária do Congresso, senão eu teria explicado a ele que 2005 foi o ano que pôs fim ao que restava de nossa capacidade de esboçar reação. Depois do choque causado pelos escândalos do governo Lula, ficamos como que anestesiados, perdemos a capacidade de nos indignar e de nos escandalizar. Até que fazemos isso, mas verbalmente, de forma retórica, não com ação e iniciativas.

Só assim se pode entender o chamado "espetáculo da pouca-vergonha": o vazio da Câmara dos Deputados transformada em local de visitação turística, com o presidente da Casa, Aldo Rebelo, posando na condição de atração. Ele era o único parlamentar presente a uma convocação extraordinária que custou aos cofres públicos quase R$100 milhões, com a maioria dos parlamentares (alguns devolveram o dinheiro) ganhando duas vezes para não comparecer.

Dificilmente se veria coisa parecida em qualquer outro parlamento de país civilizado, com direito a cenas explícitas de afronta como a do líder do PP, um certo deputado baiano Mário Negromonte, que acha legítimo o que fez. "Vergonha é roubar e matar", ele se justificou, como se meter a mão em R$443 por dia sem trabalhar não fosse uma modalidade de roubo do dinheiro do contribuinte.

Comparando feitos históricos que aqui não tiveram a participação popular, como a República, que lá foi sangrenta, o amigo francês cita um ditado: não se pode fazer omelete sem quebrar ovos. "Aqui vocês conseguem", ele brinca. Resta saber até quando.