Título: CRISE ANUNCIADA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 25/11/2004, Primeiro Caderno, p. 4

A acusação do presidente do Incra, Rolf Hackbart, de que o agronegócio é responsável pelo assassinato de sem-terra em Minas Gerais no último fim de semana pode ter sido "um ataque de verborragia", como classificou o deputado petista Paulo Bernardo; ou um problema de semântica, como definiu, apaziguador, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues.

Seria grave por si só, se a situação no campo já não fosse tão tensa que exigisse, não estímulos do governo a um clima de rivalidade crescente, mas a atuação firme no cumprimento da lei contra invasores de terra e, sobretudo, contra os que os matam.

A culpa de um fazendeiro, ou mesmo de milícias de fazendeiros, não pode ser jogada em uma categoria econômica, sob pena de o governo estar contribuindo para estigmatizar um grupo de empresários que tanta importância tem na economia do país, gerando empregos e divisas.

Mas essa disputa é mais preocupante ainda porque é sintoma de uma grave doença que corrói o corpo do governo Lula: o aparelhamento da máquina do Estado, com a conseqüente entrega de tarefas governamentais a grupos e facções políticas, que não se consideram responsáveis pelo todo, mas apenas pela sua parte do todo.

Quem escolheu o presidente do Incra foi o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, e não o da Agricultura, Roberto Rodrigues. Que também não escolheu o presidente da Embrapa, Clayton Campanhola, indicado pelo então titular do Fome Zero, José Graziano.

Ao discursar para cerca de cinco mil sem-terra na Conferência Nacional Terra e Água - Reforma Agrária, Democracia e Desenvolvimento, Hackbart disse mais: que ele e o ministro Rossetto tinham um lado nessa disputa, e esse era o lado dos sem-terra.

Essa é a questão de fundo dos problemas de ineficiência desse governo, todo retalhado entre partidos e facções intra partidárias, dividido também entre projetos que poderiam ser complementares mas se tornam antagônicos.

Quem escolheu o economista Carlos Lessa para presidente do BNDES, antes mesmo de escolher o ministro do Desenvolvimento a quem teoricamente o banco seria subordinado, foi o próprio presidente Lula, gerando dois anos de desencontros, como se fosse propriedade do banco um projeto de desenvolvimento do país, contrário à política econômica. Do mesmo modo, estar ao lado da agricultura familiar não deveria colocar seus defensores automaticamente contra o agronegócio.

Mas, desde a formação do governo Lula, esse antagonismo ficou patente, inicialmente por ignorância, hoje por uma posição ideológica de alguns setores. No início da campanha eleitoral, o candidato Lula provocou grande perplexidade quando disse que a prioridade de seu programa agrícola seria o mercado interno, para matar a fome dos brasileiros, para só depois pensar na exportação. Como se excludentes.

A realidade da economia do país já mostrou a Lula que o setor de agronegócios é o maior negócio do Brasil, respondendo por 34% do PIB nacional, gerando 37% dos empregos e ainda representa 42% das exportações, como lembrou ontem Rodrigues, que virou estrela da companhia mas, por isso mesmo, não foi aceito pela família petista.

Houve até quem sugerisse a Lula que, na reforma ministerial, o tirasse para dar lugar a alguém com o mesmo perfil ligado a um partido da base aliada, para que nenhum ministro petista seja substituído. Só faltou sugerir chamar novamente o ex-ministro da Agricultura de FH Pratini de Moraes, que é ligado ao PP e foi, aliás, um excelente ministro.

Essa permanente disputa entre a agricultura familiar e a empresarial deve-se a um preconceito político que não tem razão de existir, mas é incentivado por setores dentro do governo. Apesar de todo o sucesso do agronegócio, o governo não o incluiu na política industrial, sob a alegação de que o setor já está bastante desenvolvido. Na discussão de verbas setoriais, a preocupação do governo sempre foi com a agricultura familiar, já que consideram que os grandes investidores do setor têm condições de se autofinanciar, ou de conseguir financiamentos externos mais baratos.

Quando, ao contrário, os investimentos e incentivos deveriam ser dados especialmente para setores de ponta, como é o caso da pesquisa agropecuária. Também o presidente da Embrapa centrou sua atenção na "agricultura familiar e no combate à exclusão social no campo", colocando em risco um setor onde o Brasil é líder indiscutível em produtividade.

O dilema do governo na repressão às invasões dos sem-terra também faz parte desse imbróglio ideológico que não justifica, mas fomenta a tensão no campo. O deputado Raul Jungman, do PPS, ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, subiu ontem à tribuna da Câmara para lembrar que, no início do ano, escreveu ao presidente Lula uma "carta aberta", publicada na revista "Primeira Leitura", em que advertia para o clima de tensão crescente no campo.

Dizendo-se "muito preocupado", Jungman alertava que o "abril vermelho" desencadeado pelo MST naquela ocasião "consolidou algo perverso e que, adiante, nos será cobrado a todos: a violência como método de ação sancionado pelo poder público", pela falta de ação repressiva do governo a mais de uma centena de invasões só naquele mês.

O ex-ministro dizia que "quando, no passado, me contrapus ao MST e a outros movimentos, de forma às vezes dura, porém dentro da lei, em última instância pensava na segurança deles, os mais fracos, ainda que muitas vezes errados quanto aos métodos. Não colhi aplausos dos sem-terra, mas reduzi os índices de violência aos menores níveis das últimas três décadas".

Para Jungman, "ao se perceberem desprotegidos e sem um poder público que arbitre as diferenças, impondo a lei, muitos proprietários de terra sentir-se-ão tentados a cuidar eles mesmos da sua segurança, armando-se ou contratando milícias". Com a experiência de quem cuidou por seis anos da questão, Jungman dizia temer que isso estivesse acontecendo. E advertia: "Se o pior vier a acontecer, a sua intervenção será tanto mais dolorosa, proporcional à gravidade dos fatos, com altíssimos custos sociais, humanos e políticos". Jungman, ontem, pediu da tribuna punição para os assassinos dos sem-terra.