Título: PT e PSDB na rinha
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 01/12/2004, O País, p. 4

Os resultados positivos da economia anunciados ontem pelo governo, como o crescimento recorde do PIB este ano e até mesmo o sucesso retrospectivo de sair de um PIB negativo no ano passado para um positivo, depois da revisão do IBGE, de certa maneira amortizaram as críticas feitas na véspera pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que classificou o governo Lula de incompetente.

O que pode não ser uma ofensa na acepção do termo, mas sem dúvida é uma crítica política das mais duras.

Mas os sucessos na política econômica são atribuídos pelos tucanos ao fato de o governo Lula seguir a orientação que vinha sendo adotada nos últimos anos, o que pode ou não ser verdade, dependendo do ponto de vista de quem comenta. A grande discussão de fundo que se desenvolve hoje, no entanto, é a relação do Estado com a sociedade civil, e os tucanos estão convencidos de que é aí que está a explicação de o PT não ter conseguido alcançar seus objetivos hegemônicos nas recentes eleições municipais. E também de ter perdido o apoio da classe média.

Além das críticas diretas ao governo petista, o ex-presidente Fernando Henrique fez uma longa análise sobre as relações do Estado com a sociedade, criticando o que chamou de ¿tentativa de volta ao passado¿. Segundo ele, a idéia equivocada de que o que falta é mais ação estatal ganha força atualmente no país. ¿Não dá mais para imaginar que, uma vez que o Estado retome sua capacidade de investir, e que exista uma burocracia competente e, pior ainda, um partido também competente para tomar conta dessa burocracia, o Brasil vai avançar¿.

Segundo Fernando Henrique, ¿hoje temos um desafio diferente, e o PSDB nasceu com novas idéias¿. Não seria apenas o fato de que o Estado não tem recursos, como teve nos anos 50, 60 e 70, para fazer os investimentos necessários. ¿É porque efetivamente a sociedade civil cresceu muito. E, com ela, cresceu também o mercado¿.

O sociólogo Eduardo Graeff, um dos principais assessores de Fernando Henrique no governo, acha que ¿talvez o PSDB tenha mais facilidade para sintonizar com a nova sociedade¿, que seria mais conectada horizontalmente do que organizada verticalmente, porque na origem o PSDB ¿tem uma relação mais frouxa com a velha sociedade¿. O que costuma ser apontado como defeito de um partido social-democrata, não ter ¿ligação orgânica com o movimento sindical¿, pode ser uma vantagem, segundo Graeff, ¿quando as classes, categorias, setores sociais organizados perdem relevância política e o `homem comum¿, o `cidadão¿, o indivíduo meio solto, mas antenado, ganha relevância¿.

Outro cientista político, Augusto de Franco, braço direito de Ruth Cardoso no Comunidade Solidária e que continua trabalhando com ela na ONG Comunitas, diz que a discussão não é só sobre a sociedade civil e o PT, e sim sobre ¿o padrão de relação entre Estado e Sociedade, e envolve os partidos políticos em geral, que ainda são organizações proto-estatais, adequadas para transitar na esfera pública-estatal, mas inadequadas para se mover na emergente esfera pública-não-estatal¿.

Ele acha, no entanto, que dentre os partidos brasileiros, o PT ¿tem lá suas particularidades (o `DNA hegemonista¿, a herança da cultura autocrática da esquerda, o estatismo exacerbado, a cultura sindicalista da ocupação e controle do aparelho etc.) que agravam a sua relação com a chamada nova sociedade civil¿.

Para ele, ¿o que mudou basicamente foi o desenho da sociedade contemporânea¿. Nesse novo tipo de sociedade, que o sociólogo espanhol Manoel Castells chama de sociedade-rede, ¿o fenômeno da emergência de um novo tipo de ordem, de baixo para cima, é o fundamental¿.

Segundo Franco, ¿num mundo cada vez mais globalizado, ao contrário do que se poderia esperar, ordens locais começam a emergir, comportamentos periféricos começam a trafegar pela rede e a se replicar, em uma dinâmica que nada tem a ver com maioria e minoria¿. Os comportamentos dominantes não surgiriam mais ¿a partir de diretivas e palavras de ordem proferidas por um líder carismático, e sim a partir da composição de miríades de inputs , de vários micromotivos simultâneos¿.

Essa fragmentação seria, segundo Franco, ¿insuportável para os que têm a pretensão individual de ser condutores de rebanhos¿. O cientista político Augusto de Franco diz que a cultura partidária tradicional impede que o PT veja as transformações sociais contemporâneas. ¿É uma cultura fechada, que fala para as massas, mas não ouve as pessoas, que vê e valoriza as grandes manifestações, mas não percebe a importância dos movimentos moleculares que caracterizam a mudança atual¿.

Por isso também o PT está mais acostumado a tratar com representações corporativas, pois ¿corporações são representações formadas por delegação, por alienação de poder¿, do que com ONGs e outros representantes da nova sociedade civil, diz Franco.

Tudo isso não passaria de pura ¿masturbação sociológica¿, na expressão imortalizada por Sérgio Motta, que dá o nome ao instituto onde houve o seminário, se Fernando Henrique não tivesse ¿incorporado¿ o espírito do ¿trator do PSDB¿ que, como ele mesmo definiu, ¿esmagava os adversários¿. A análise do sociólogo deu lugar à exortação à luta do líder político, que assumiu uma máxima que o chefe do Gabinete Civil José Dirceu, que já foi o ¿trator do PT¿, sempre defendeu: ¿Política é isso: você tem um adversário e luta contra ele¿.

No documentário de João Salles, ¿Entreatos¿, sobre a campanha presidencial de 2002, Lula, contando a fundação do PT, relembra uma outra ¿masturbação sociológica¿ que provocava grande discussão entre os intelectuais, que lhe foi levada por José Genoino: ¿O PT é tático ou estratégico¿ ? Lula respondeu com um palavrão: ¿Sei lá, vamos é fazer o partido¿.

Depois de tentar quatro vezes, e de perder duas no primeiro turno para o PSDB, o PT chegou ao poder derrotando o PSDB, e quer se manter lá. Os dois partidos polarizam a política nacional há pelo menos dez anos, têm origem comum, mas a luta pelo poder e certos conceitos políticos os distanciam cada vez mais. Os adversários estão escolhidos, e a corrida para 2006 já começou. Só o tempo dirá se o PT envelheceu como representação partidária ou se, ao contrário, a mística da militância ainda faz a diferença.