Título: O BEI DE WASHINGTON
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Fonte: O Globo, 26/01/2005, Opinião, p. 7

Eça de Queiroz dizia que os portugueses, quando lhes faltava de quem falar mal, caiam de pau no bei de Túnis. Era consenso em Lisboa que todo e qualquer bei da então colônia turca na África do Norte era corrupto e/ou incompetente.

Hoje, a Tunísia é país livre e o império turco sumiu na poeira. Mas sempre se acha algo parecido com um bei para se desancar. Por exemplo, George W. Bush. Nos últimos dias ele tem sido asperamente criticado ¿ não sei se muito em Portugal, mas bastante no seu próprio país e em diversos outros ¿ pelo discurso de posse no segundo mandato.

Antes de aderir à onda, um parênteses. Deve-se reconhecer que hoje, diferentemente do que acontecia após a primeira posse, Bush tem mandato incontestável, amparado na vontade de significativa maioria dos americanos que votam. Sua promessa de levar a democracia a todos os países onde ela não existe, a pau e fogo se necessário, vai ao encontro, por enquanto ao menos, daquilo que seus eleitores dele esperavam. Fecha parênteses.

Há poucos dias, um intelectual saudita, professor da Universidade de Riad, resumiu adequadamente a perplexidade internacional ante a promessa ¿ ou ameaça ¿ do presidente americano: onde já se viu, disse, impor a democracia pela força? E indagou se um novo Plano Marshall não seria mais adequado.

Infelizmente não é por aí. O Plano Marshall, que consistiu em investimentos maciços nos países europeus recém-libertados da opressão nazista, fortaleceu regimes democráticos preexistentes, impedindo que partidos comunistas, apoiados por Stalin, chegassem ao poder em eleições. Ou seja, os esforços do general George Marshall fortaleceram democracias, não as fizeram nascer. O que Bush propõe não é enxurrada de dólares, mas repetição das aventuras recentes no Afeganistão e no Iraque. Neste, a propósito, as eleições patrocinadas pelos EUA estão sendo disputadas, pelo menos no papel, por mais de cem partidos; o número de candidatos aos 275 lugares na Assembléia Legislativa passa de sete mil. Isso, num cenário que inclui o boicote das eleições por frações importantes e atentados que não cessam. Não é má vontade considerar que esse é um caminho acidentado demais para levar a uma democracia, mesmo do tipo mais-ou-menos.

Principalmente quando o presidente americano que propõe democratizar o mundo, queira este ou não, mantém tranqüilas alianças com variados regimes autoritários ou totalitários. Bush não aplaude, por exemplo, o totalitarismo chinês ou o autoritarismo russo ¿ mas para esses cachorros grandes não se fala em carrocinha. E eles não ouvem as ameaças diretas, que sugerem planos militares em gestação, nos últimos tempos dirigidas a regimes não democráticos como os da Síria ou do Irã.

Em resumo, o grande equívoco das palavras enfáticas da semana passada consiste numa generalização retórica sobre nações e formas de governo, acompanhada da ameaça de ações políticas e militares contra alvos escolhidos a dedo.

Não sei se o bei de Túnis do tempo de Eça dava motivos desse tope para ser desancado ultramar. Mas certamente temos lá em Washington alguém que sempre ajuda quem está sem assunto novo na algibeira.