Título: O MAIOR DOS DESASTRES
Autor: Cristóvam Buarque
Fonte: O Globo, 17/02/2005, Opinião, p. 7

Cresci enfrentando as cheias do Rio Capiberibe; traçando linhas na areia da rua, víamos a água subir e chegar ao primeiro degrau da varanda. Vivia em Honduras quando o furacão Fifi passou; fomos acordados pelos vizinhos de madrugada, para deixamos a casa. O rio em frente, onde mulheres lavavam roupa, crescera com a violência da represa rebentada e arrasara toda a rua. Voltei a Honduras anos depois e vi o estrago ainda maior do furacão Mitch, que derrubou metade da casa onde eu tinha morado. Estive também em Manágua após o terremoto que destruiu a cidade. Mas nada disso se compara ao que vi esta semana no Sri Lanka pós-tsunami.

Visitei Arthur Clarke, o famoso escritor de ficção científica, que vive no país há algumas décadas; ele mostrou-me uma simulação da tsunami feita pela Nasa. Nela vê-se o planeta, o ponto em que acontece o terremoto, a onda gigante espalhar-se, chegar à costa de diversos continentes, recuar e avançar de novo. Satélites artificiais já haviam mostrado vulcões em erupção, mas nunca um acidente natural de proporções tão gigantescas.

No Sri Lanka, o cenário é desolador. Fui de helicóptero da capital, Colombo, até o extremo sul da ilha. Por toda a costa, vemos escombros de cidades varridas do mapa. Surpreendentemente, ao lado dos destroços, há partes intocadas pelas ondas. Entre casas destruídas, uma ou outra casa inteira. Nas cidades mais atingidas, caminha-se por onde passou a onda, ruínas de casas, muros, paredes, telhados. Destroços que se estendem a até trezentos metros longe da praia. Os coqueiros à beira-mar tiveram a casca arrancada a uma altura de três, quatro metros.

Um país tão pequeno perdeu, em menos de cinco minutos, 32 mil pessoas, 80 mil casas, 156 escolas e 68 hospitais. Mil crianças perderam o pai e a mãe. Cada pessoa tem sua história - como soube, porque não estava no local, como se salvou. O primeiro-ministro soube pelo motorista, a presidente da República viu pela televisão, na Holanda. Uma mulher me contou que estava em casa quando sentiu uma pancada nas costas, de repente estava em cima de uma árvore. O irmão com quem conversava desapareceu, a casa sumiu.

É surpreendente que os animais não tenham morrido, salvo alguns domésticos, que já tinham perdido parte do instinto. Elefantes amarrados romperam as correntes e fugiram antes de as ondas chegarem; os que transportavam turistas saíram em enlouquecida carreira levando passageiros assustados, mas salvos. Pássaros voaram para longe. Como se sua percepção superasse a inteligência do homem, incapaz de perceber o inesperado.

Também surpreende a capacidade com que um país tão pequeno se recupera. Cheguei a Colombo às duas da madrugada do feriado da Independência. Ainda de manhã, no primeiro contato com o vice-ministro das Relações Exteriores, desculpei-me por tomar seu tempo no feriado. Ele respondeu que desde o maremoto no Sri Lanka não há domingo nem feriado. De fato, o país vive para se reconstruir. No dia seguinte, o primeiro-ministro convidou-me para visitar a zona mais afetada pela tragédia, acompanhando-o no lançamento da pedra fundamental de uma vila inteira que já começa a ser reerguida. Todas as escolas destruídas já têm os recursos para a reconstrução.

Nada disso será possível quando vier a grande tsunami provocada pelo contínuo aquecimento do planeta. O que aconteceu no dia 26 de dezembro passado é uma pequena amostra do que vai acontecer dentro de 50 anos por causa da gananciosa produção industrial, que aquece a Terra, derrete os pólos, eleva o nível do mar, muda o clima e desarticula a agricultura.

A tsunami foi um aviso do mar para que evitemos a tsunami que está sendo preparada pelo homem. O 11 de setembro foi um ato de poucos homens que matou duas mil pessoas; o 26 de dezembro foi provocado pela Natureza e matou 200 mil pessoas. Mas será a estupidez humana, na forma de uma economia que se considera inteligente, que provocará o maior de todos os desastres, sem data marcada, mas com destino traçado.