Título: A IMPORTÂNCIA DO ACESSO À LEITURA
Autor:
Fonte: O Globo, 04/02/2006, Prosa & Verso, p. 2

Iraci vende potinhos de iogurte e talões de estacionamento numa praça atrás do MASP, em São Paulo. Sempre a vejo no seu ponto, lendo. Ela mal ganha dois salários mínimos por mês. Compra livros em sebos e pontas de estoque. É uma leitora eclética. Ano passado, entre outros, leu ¿O código Da Vinci¿, ¿O fantasma de Luis Buñuel¿, de Maria José Silveira; já leu também Guimarães Rosa, Machado de Assis (adora!) e Clarice Lispector. Pediu emprestada minha edição das ¿Mil e uma noites¿.

Tubertino é goiano, ascensorista no prédio de um banco na Avenida Paulista. Esse gosta de policiais (¿Comecei com a Agatha Christie, mas gosto mesmo é dos americanos¿) e de livros espíritas, Chico Xavier, Zíbia Gasparetto, etc. Sobe e desce o dia inteiro lendo. Já incorporou o ritmo dos andares e vai parando sem olhar o indicador luminoso.

O caminhante atento encontra esses personagens por aí. Lendo geralmente exemplares de segunda mão, velhas edições do Círculo do Livro ou livros adquiridos em sebos. Ou aqueles vendidos em bancas de revistas.

Entretanto criou-se o mito de que ¿brasileiro não gosta de ler¿. Será verdade?

Ou será que essa versão de que ¿brasileiro não gosta de ler¿ revela mais sobre uma elite ¿ política, econômica e administrativa ¿ que não percebe a importância do acesso à leitura para todos como um componente essencial na construção de uma sociedade democrática? Será que os exemplos acima não mostram como as pessoas buscam, nos interstícios do seu tempo e com parcos recursos, condições para saciar necessidades multifacetadas de acesso a esse instrumento de informação, cultura, lazer e de satisfação de inquietações psicológicas, religiosas e morais que são os livros?

Mas não contraponhamos anedotas pontuais a um mito. Alguns dados podem ser úteis.

A pesquisa Retrato da Leitura no Brasil, feita no ano 2000 por iniciativa das entidades do livro e dos fabricantes de papel é a única, até hoje, que tentou definir o consumo de livros no país, medindo sua penetração e as dificuldades de acesso. Não foi refeita desde então, o que seria necessário para acompanhar as mudanças.

Entretanto, ainda que nos baseemos em dados defasados, o que o Retrato mostra não sustenta a versão de que ¿o brasileiro não gosta de ler¿. Na verdade, contribui para pensar o contrário.

A pesquisa foi feita por amostragem considerando como universo a população superior a 14 anos de idade com pelo menos três anos de escolaridade, o que equivalia, na época, a 86 milhões de pessoas. Esse universo, entretanto, incluía o grande grupo de analfabetos funcionais, que chega a 65% da população.

O Retrato da Leitura apresenta, grosso modo, os seguintes resultados: 20% desse universo comprou pelo menos um livro nos últimos 12 meses, com a média de 5,92 livros per capita; 14% do universo estava lendo um livro no momento da pesquisa; 30% do universo declarou ter lido um livro nos últimos três meses; 62% afirmou que ¿gosta de livros¿.

A correlação não é simples, mas indica claramente que a população efetivamente alfabetizada (26% da população total) é, em sua esmagadora maioria, leitora de livros.

O Retrato da Leitura constatou também que existe uma total dependência da escolaridade vinculada ao hábito de leitura (e compra) de livros, além da forte influência do fator econômico: uma parcela substancial dos entrevistados não lê mais porque os livros são caros e não são encontrados em bibliotecas.

Duas conclusões se impõem.

A primeira é que os brasileiros com mais instrução, capazes de compreender o texto escrito, lêem bastante. Ainda estão longe dos espanhóis, por exemplo, (35% deles são ¿leitores freqüentes¿), mas o suficiente para caracterizar como mito essa história de que brasileiro não gosta de ler.

A segunda é que dois fatores estão na raiz do baixo índice de leitura: escolaridade (de qualidade) e condições de acesso ao livro. Há décadas vemos um esforço continuado de melhoria na qualidade do ensino. Mas não se vê esse mesmo esforço e recursos para a construção e aparelhamento das bibliotecas públicas, cujo estado geral é simplesmente uma vergonha nacional.

Com mais (e melhor) educação, e mais (e bem aparelhadas) bibliotecas, leremos tanto quanto qualquer povo.

FELIPE LINDOSO é antropólogo, pesquisador de políticas públicas de cultura e autor do livro ¿O Brasil pode ser um país de leitores?¿ (Summus Editorial)