Título: A QUEM AGRADAM AS CPIS
Autor: ROBERTO DaMATTA
Fonte: O Globo, 08/02/2006, Opiniao, p. 7

As CPIs agradam, pela ordem, aos representantes dos seguintes grupos de opinião: (a) os que odeiam as propostas do PT e do governo, bem como os seus métodos de gerenciamento, e tudo o que vêem no manto dos partidos populares; (b) os que fazem oposição ao PT e ficaram indignados com a realidade do mensalão e, mais ainda, com a existência de um elo institucionalizado entre o financiador do esquema e figuras-chaves do PT como o seus demissionários tesoureiro, secretário-geral e presidente; (c) os políticos profissionais que querem ¿derrotar¿ seus adversários e sabem que as CPIs, de qualquer tipo e em qualquer momento, ajudam nesta tarefa que é muito mais dura do que parece; (d) os amantes da autoflagelação que têm nas CPIs uma das provas cabais ¿ ¿eu não disse que esse negócio de eleição e partido político não ia adiantar nada?¿ ¿ que o Brasil está mesmo predestinado ao fracasso; (e) os que, ignorantes por destino ou escolha, percebem que há ¿alguma merda ocorrendo em Brasília¿, mas de nada sabem ou querem saber, porque ¿o problema não é meu que não entendo, discuto ou me interesso por política faz tempo¿.

As pessoas do grupo (a) são as que têm aversão a todas as propostas que contemplam um amplo espectro eleitoral e tomam o chamado ¿povo¿ e os ¿pobres¿ (vistos como oprimidos em busca de um patrono com respostas para o seu destino, senão ficam à mercê da bandidagem e do crime) como alvo e centro de sua atuação. Para eles, as CPIs seriam uma boa ocasião para liquidar de vez com esses ¿comunistas¿ que pensam em reformar radicalmente o mundo. Para elas, o Estado não deve ser modificado nem ter um papel substantivo como agente de mudança. Basta fazê-lo operar bem para tudo melhorar. As coisas estão basicamente nos seus lugares e o mundo não precisa de mudança alguma, muito menos de transformações de raiz.

As pessoas de (b) são, creio, a maioria. Dele fazem parte as que seguem com preocupação e interesse a política nacional. Muitas votaram em FHC e, posteriormente, no Lula porque queriam uma gestão diferente e repleta de trabalho e energia, com a inovação de ser diretamente voltada para a massa dos brasileiros pobres e ainda marginalizados. Outras não compartilhavam os valores fundamentais do PT e desconfiavam de seus métodos de participação política ¿ que julgam autoritárias ¿ mas nem por isso deixaram de louvar a eleição de Lula como um personagem político comprometido com uma gestão honesta e capaz de corrigir os múltiplos e, de resto, sabidos vícios ¿sistemáticos¿ (mas nem por isso legítimos ou honrados) do sistema político brasileiro.

Os agrupados em (c) dispensariam comentários, se não estivéssemos vivendo um momento caracterizado por uma imprudente ausência de limites entre as pessoas e as instituições e os cargos que exercem. A desfiguração é de tal ordem que hoje se sabe pouco quem fala por tal ou qual grupo, partido, instituição ou papel social. A ausência de clareza entre os papéis (com sua impessoalidade) e os atores, com os seus respectivos interesses, promove esse triste jogo de má-fé, no qual surgem dois claros objetivos: a tentativa de realização de planos pessoais através do papel e a vingança no melhor estilo Conde de Monte Cristo. O resultado é a contaminação do sistema pelo veneno dos projetos pessoais. Isso que os comentaristas chamam de feitiço. O tal feitiço recheado de má-fé e ausência de isenção que sempre se volta contra o feiticeiro. Ora, a lógica do feitiço, como sabem os antropólogos da minha tribo, tem um único alvo: a destruição egocêntrica do adversário às custas da ética coletiva.

O pessoal de (d) e (e) são os mais interessantes e enigmáticos. Pois exprimem a persistência de um radicalismo muito brasileiro: a de negar o valor do Brasil e o Brasil como um valor. Ali estão os que não acreditam no Brasil e, num sentido profundo, o rejeitam como sociedade, cultura e Estado nacional. Para eles, não existe possibilidade de aprimoramento e por isso dizem que vão participar na negativa, não participando. Como os suicidas, essas pessoas esquecem que o mundo segue vivo sem elas, muitas vezes agradecendo a sua participação ausente e enviesada. São os que fazem parte deste grupo que, por seu desânimo e visão ingênua da dinâmica da sociedade que sempre opera pelo erro, pelo imprevisto e pela metade, justificam as ditaduras que ¿ agora sim ¿ ¿vão cuidar bem de todos nós¿. Um clássico perdão caberia apenas aos ignorantes por destino e determinação de uma sociedade que tem sabido bem distribuir as suas taxas de mazela.

Finalmente, cabe um último grupo, uma categoria (f), essa letra significativa do nosso vocabulário contemporâneo. Trata-se de gente como eu que, ao assistir a uma CPI ou ouvi-la, fica estarrecida com o maneirismo dos inquisidores diante dos seus investigados, naquela dialética de desculpas, palavras de solidariedade e perdões antecipados que não deixam dúvida para quem é de ¿f¿ como é duro, no Brasil, tentar incriminar e procurar chegar perto de punir quem faz parte do nosso clube. Entende-se, então, por que a expressão ¿cortar na própria carne¿ é uma impossibilidade no sistema político brasileiro.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.