Título: Bolsa e voto
Autor: Cristovanm Buarque
Fonte: O Globo, 04/03/2006, OPINIÃO, p. 7

Há muito tempo o Brasil paga bolsas para que universitários formados continuem estudando, em vez de entrarem logo no mercado de trabalho. Em 2005, o governo brasileiro alocou R$540 milhões ¿ e deveria gastar mais ¿ para financiar bolsas de estudos para brasileiros já graduados, no Brasil ou no exterior. A partir dessa constatação, nasceu em 1987, na UnB, a idéia da Bolsa-Escola. Se o Brasil precisa pagar para que 35 mil adultos formados não comecem a trabalhar e continuem estudando após a graduação, por que não pagar para que milhões de crianças estudem, em vez de trabalhar? O conceito evoluiu para o pagamento não só às crianças trabalhadoras, mas a todas as crianças pobres, que vivem na fronteira da evasão escolar. Além de atrair as crianças para o estudo, a Bolsa-Escola daria um apoio financeiro às suas famílias. Em 1995, a idéia se tornou realidade. O governo do Distrito Federal começou a pagar um salário mínimo às mães cujos filhos freqüentassem a escola sem faltas durante o mês. Pagava-se um valor fixo, independentemente do número de filhos, o que deixava claro que não se tratava de ajuda, mas sim de remuneração por um serviço fundamental ao país ¿ a garantia da educação a todas as crianças ¿ tão importante quanto as bolsas dos já formados. Assim como o importante na bolsa de estudos não é a renda paga ao aluno, mas o curso que ele faz, a importância da Bolsa-Escola não estava no valor pago, mas na freqüência à escola. E, todos os meses, famílias deixavam de receber o benefício, porque uma de suas crianças tinha faltado mais de dois dias. No entanto, o programa não teria o impacto esperado se não fossem dois outros fatores. Primeiro, o investimento e as reformas para melhorar a qualidade da escola, sem a qual a bolsa é uma mera transferência de renda, sem impacto transformador. Se a bolsa garante a manutenção da família, a escola garante a emancipação de seus filhos. Sem a bolsa, muitas crianças não iriam à escola, mas, sem uma boa escola, a bolsa de pouco serve. Até porque bolsa nenhuma segura a criança na escola, se ela não for atraente. Segundo, o pagamento da Poupança Escola: um depósito de R$100, no final do ano letivo, a cada criança aprovada e matriculada na série seguinte, para ser sacado ao final da educação básica. Era um incentivo ao aproveitamento escolar, e também à conclusão do ensino médio. Em 2000, depois de outras cidades e países terem adotado a Bolsa-Escola, o presidente Fernando Henrique a implantou no Brasil. Mas pagava pouco e não fez as mudanças necessárias na educação básica. Em 2004, o governo Lula piorou o programa, transformando-o em Bolsa Família. Trocou o nome Escola por Família, apontando a transformação de um programa educacional em assistencial. Passou a gerência do programa do Ministério da Educação para o da Assistência Social. Além disso, juntou ao programa ações puramente assistenciais. Mesmo tendo mantido na lei a necessidade da freqüência às aulas para os filhos dos beneficiados, pôs fim à centralidade do aspecto educacional, tornando impossível vincular bolsa e escola, já que não é essa a finalidade do ministério executor. Pior, não é fácil exigir de uma família com filhos o que não se exige de uma família necessitada, mas sem filhos em idade escolar. O programa se descaracterizou. Todos sabem que não serão penalizados se os filhos estiverem fora da escola. A bolsa emancipadora passou a ser mantenedora. Mas se tornou um programa de forte apelo eleitoral, pois é vista como ajuda sem contrapartida, uma bondade recebida do governo. Assim como os escravos, que não acreditavam na abolição e se contentavam com qualquer medida protetora, os beneficiários da bolsa se contentam com a manutenção de suas pobres vidas, em vez de lutarem por uma educação emancipadora. E o presidente ainda dirá, na sua campanha, que candidatos de outros partidos vão acabar o programa que ele criou. Mesmo que esses sejam aqueles que o implantaram, no DF ou no Brasil.