Título: VERGONHA ESCONDIDA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 10/03/2006, O País, p. 4

A disparidade de comportamento entre os membros do Conselho de Ética e o plenário da Câmara, um recomendando a cassação dos mandatos da maioria dos envolvidos nos escândalos políticos, e o conjunto dos deputados absolvendo todos os que foram julgados, com exceção dos dois principais envolvidos, dá o que pensar.

Primeiro, na incongruência que é cassar o mandato de Roberto Jefferson, que denunciou os crimes, e de José Dirceu, que os coordenou, e simplesmente livrar da cassação os que se beneficiaram deles. É como se o plenário da Câmara estivesse dizendo que os deputados e senadores são todos uns pobres ingênuos, levados a cometer irregularidades por circunstâncias das quais não poderiam se livrar.

Depois, pensar no que leva um conjunto de deputados a agir de maneira tão diferente diante do mesmo fato. A primeira dedução, quase óbvia, é que enquanto na Comissão o voto é aberto, no plenário ele é secreto, o que acoberta as decisões individuais com o amplo manto do anonimato.

Esse parece ser um ponto crucial para o aperfeiçoamento de nossa democracia, e não é à toa que desde 2001 tramitam no Congresso diversas emendas constitucionais, e ontem mesmo já surgiram outras novas, transformando em aberto o voto secreto. A demora para aprovar essa mudança mostra bem as dificuldades que temos para moralizar nossos hábitos políticos.

É a mesma dificuldade que existe para a aprovação de uma reforma política de profundidade, que organize a atuação política e não permita infidelidades e traições impunes. É também devido a essa geléia geral em que se transformou a política nacional, que os políticos querem derrubar a verticalização, que impede as coligações que não tenham coerência partidária.

Só existem poucas ocasiões em que o voto é secreto no Congresso brasileiro: para a aprovação de embaixadores no Senado; para casos de perda de mandato de parlamentar; prisão de parlamentar em caso de flagrante de crime inafiançável; escolha de ministro do Tribunal de Contas da União e de presidentes e diretores do Banco Central; na exoneração do Procurador-geral da República antes do término de seu mandato.

Em todos os casos, o motivo alegado é proteger os parlamentares das pressões dos demais poderes, mas, na prática, o que se vê é o contrário: o sigilo propicia ao parlamentar agradar a membros de outros poderes, ou proteger seus pares, sem que o eleitorado possa puni-lo.

Serve também para pequenas vinganças políticas, como quando a indicação do ex-deputado Luiz Salomão para presidir a Agência Nacional do Petróleo (ANP) foi derrubada sob a coordenação anônima do senador José Sarney; ou quando o ex-presidente Itamar Franco quase foi vetado como embaixador.

Mas o choque de visões entre a Comissão de Ética e o plenário da Câmara reflete também um ambiente político deteriorado, onde a esperteza predomina sobre os valores éticos. A recuperação da popularidade do Congresso, depois que foi aprovado o fim do recesso parlamentar, ou mesmo a do presidente Lula, mesmo depois de todos os escândalos, parece ter dado aos políticos a certeza de que a opinião pública tem mesmo memória curta e que, a sete meses das eleições, tudo é permitido.

Os quatro deputados que renunciaram, com medo da cassação, para poder se candidatar novamente nas eleições deste ano, devem estar arrependidos, pois pelo clima de camaradagem que campeia no plenário da Câmara, a chance de serem absolvidos seria grande.

Ao lado da esperteza, há também uma tentativa de explicar o corporativismo pela compreensão das dificuldades que todos têm para financiar suas campanhas eleitorais.

Uma das seqüelas mais perigosas dessa crise política em que o Congresso se afunda é a banalização das ações criminosas. Desde que o presidente Lula, na famosa entrevista em Paris disse que o que o PT havia feito era o que "sistematicamente" se faz na política brasileira, procura-se transformar o uso de caixa dois nas campanhas políticas um fato corriqueiro, que não merece punição tão drástica quanto a cassação, mas sim uma legislação mais moderna que proteja os políticos dessa "tentação".

Na verdade, nesse valerioduto descoberto agora, mas que já funcionava regionalmente em Minas desde 1998, há dois tipos de crimes: o caixa dois propriamente dito, que envolve todos os deputados do PT que sacaram dinheiro na boca do caixa do banco Rural, e mais o deputado Roberto Brant, do PFL, absolvido ontem, e o senador Eduardo Azeredo do PSDB; e o puro e simples suborno, que é o pagamento do mensalão aos deputados para que trocassem de legenda ou votassem a favor do governo em questões importantes.

Foi às custas do mensalão que os partidos aliados - PTB, PP, PL -- incharam durante a atual legislatura, para garantir ao governo uma maioria folgada na Câmara. Tudo indica que foi graças aos conselhos profissionais do grande advogado criminalista Márcio Thomaz Bastos, que por sorte de Lula ocupa o Ministério da Justiça desde o início do governo, que o PT e o próprio presidente, passaram a bater na tecla de que tudo se limitava a caixa dois de campanha eleitoral. Um crime, na definição de Thomaz Bastos, mas um crime desculpável, na visão condescendente do corporativismo político.

As duas situações são criminosas, e não apenas dizem respeito a crimes eleitorais. Estamos em fase de vale-tudo político, e o que prevalece é a interpretação literal da famosa frase de Tayllerand - "A política é a arte de vencer. Só conta o resultado. O único critério de excelência é a vitória. E se em outras circunstâncias da vida pode haver derrotas sublimes, mais nobres que as vitórias, no jogo da política, a única justificativa para empreender algo é levá-lo ao sucesso".