Título: `PENSARAM PODER PRATICAR ILEGALIDADES¿
Autor: Adriana Vasconcelos, Diana Fernandes ,Geralda Doca
Fonte: O Globo, 27/03/2006, O País, p. 3

Para historiador, palavra final sobre a crise será dada pelo cidadão nas eleições

Num tempo de frustração e desalento com a crise, o historiador Luiz Felipe de Alencastro tenta tirar uma lição dos últimos acontecimentos ¿ absolvições dos envolvidos com o mensalão, carteirada do comandante do Exército e violação da conta do caseiro Francenildo Costa. Para Alencastro, professor de História do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV), a perplexidade da população é o sinal de que o país mudou e o cidadão está exigindo mais dos poderes públicos. Nesta entrevista por e-mail, o historiador, simpatizante do PT, ainda se diz chocado com a afirmação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o caixa dois: o PT fez o que todos fazem sistematicamente.

Como o senhor analisa a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, que acusa o ministro Antonio Palocci?

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO: Trata-se de um ato ilegal que deve desembocar na punição do responsável ou dos responsáveis.

E o conjunto desses fatos das últimas semanas à luz da ética (ou da falta dela)?

ALENCASTRO: No curto prazo, pode parecer que o país vive uma época de imoralidade, de esbórnia total. Numa perspectiva mais longa, é diferente. O país está acabando com o nepotismo, entranhado na História brasileira, e com os abusos salariais do setor público. O governo FHC criou a lei da quarentena, que o governo Lula quer ampliar; o ministro da Fazenda, entre outras coisas, tem agora de explicar uma carona que pegou no jatinho de um empresário. Mostra que os cidadãos estão mais exigentes e que os poderes procuram, com altos e baixos, pôr cobro aos desmandos.

Algum fato o chocou?

ALENCASTRO: O primeiro foi a declaração do presidente Lula na entrevista em Paris ano passado, afirmando: ¿O que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, é o que é feito no Brasil sistematicamente¿. Ora, ele tinha que acrescentar imediatamente: trata-se de atos delituosos que nós devemos fazer cessar! Outro fato foi o disparate de alguns parlamentares, ameaçando, em plena sessão do Congresso ¿dar uma surra no Lula¿! Por dever de ofício, sou leitor dos debates parlamentares no Império e na República. Não conheço precedente em que parlamentares tenham ameaçado de ¿dar uma surra¿ em algum ministro ou presidente. Creio que este fato inédito ¿ uma expressão do coronelismo mais rastaqüera ¿ só acontece porque o presidente é um ex-operário. Acho o fim do mundo que um parlamentar propague a justiça privada e o coronelismo, ameaçando fisicamente o presidente da República no Congresso.

O país vive uma crise institucional, moral?

ALENCASTRO: Não resta dúvida que a corrupção revelada pelas três CPIs vai dar argumentos poderosos à oposição. Faz parte do jogo democrático. As rivalidades em torno das eleições presidenciais de 2007, aqui na França, aumentam a crise que o país está atravessando, com estudantes e sindicalistas.

Há interferência de um poder no outro?

ALENCASTRO: O STF tem sido chamado a resolver problemas criados pela inércia do Congresso. A verticalização é exemplar: o Congresso não se decidiu no prazo, inviabilizando a vigência nas próximas eleições.

Que Brasil que aparece depois do mensalão?

ALENCASTRO: Como brasileiro, eleitor de Lula e simpatizante do PT, fico pasmo com a cara-de-pau e a ignorância política dos dirigentes que pensaram poder praticar estas ilegalidades, seqüestrando a honra dos militantes petistas.

O projeto de poder que chegou ao poder com Lula faliu?

ALENCASTRO: O mensalão e os escândalos envolvendo o ministro da Fazenda criam grande frustração e desalento. Mas Raul Pont teve quase a metade dos votos para a direção do PT. O número de militantes petistas aumentou nos últimos meses, talvez por causa do mensalão: quem não era militante mas votava no Lula resolveu entrar no partido para obrigá-lo a seguir seus princípios e seu programa político.

Mas o PT ainda tem sentido, já que o grande argumento da ética caiu por terra?

ALENCASTRO: Há mais de 800 mil militantes no PT. Em outubro, 314 mil votaram no primeiro turno para a escolha da direção do partido. Isso não existe em nenhum outro partido ¿ veja-se a embrulhada do PSDB para escolher Serra ou Alckmin. Certamente, para estas centenas de milhares de cidadãos, o PT tem muito sentido.

Como o senhor analisa a candidatura de Geraldo Alckmin?

ALENCASTRO: O país inteiro ficou polarizado em torno da luta do PSDB paulista, da política paulista, como nos anos 20, no tempo de Júlio Prestes. Alckmin terá que se fazer conhecer pelo Brasil para descontar os 20 pontos que o separam de Lula. Reivindicar sua filiação com Mário Covas não resolve o problema.

O plenário já absolveu vários deputados acusados de envolvimento com o mensalão. O caixa dois agora foi oficialmente perdoado?

ALENCASTRO: A palavra final será dada pelo eleitor em outubro.

Por fim: há uma crise ética?

ALENCASTRO: Há uma crise ética durável na sociedade brasileira: a tolerância da miséria e da violência. A lição deste ano é que as instituições funcionam, a imprensa é livre, o Congresso cassou o ministro mais poderoso do governo e vamos ter eleições democráticas de novo.