Título: ENTRE BUSH E CHÁVEZ
Autor: Roberto DaMatta
Fonte: O Globo, 04/05/2006, Opinião, p. 7

Do jeito que vai, a próxima questão é saber quando o novo Mercosul vai convidar Cuba para entrar no bloco. Qual novo Mercosul? Esse aí, sob a liderança do presidente da Venezuela, Hugo Chávez.

Exagero? Observe-se então a cúpula marcada para hoje, em Puerto Iguazu. O problema central envolve Brasil e Bolívia e decorre da nacionalização da Petrobras decretada pelo presidente boliviano Evo Morales. É assunto, portanto, de Lula com o companheiro Morales.

Mas chamaram Chávez para a cúpula. Chamaram também Nestor Kirchner, o que faz algum sentido. A Argentina, como importadora do gás boliviano, é parte da história, mas parte menor porque não há estatal argentina sendo confiscada. Assim, a questão comum entre Brasil, Argentina e Bolívia é a manutenção do fornecimento de gás e o preço.

Lula continua precisando de um particular com Morales para o tema Petrobras.

Chávez continua não tendo nada a ver com isso, a não ser de modo muito indireto. A Venezuela tem reservas de gás, maiores do que as bolivianas, e promove a idéia de um megagasoduto para levar seu produto a toda a América do Sul. Se fosse viável, seria uma alternativa, concorrência ao gás boliviano. Seria para isso ¿ ameaçar Evo Morales ¿ que Chávez teria sido convidado a Foz do Iguaçu?

Certamente não. Ele está lá como mentor, guia e suporte do colega boliviano. Os dois, aliás, acabam de assinar um tratado comercial com Cuba. Chávez é o líder sul-americano da ala nacional-populista.

Já o presidente do Uruguai, Tabare Vazquez, encontra-se hoje em Washington com o propósito de explorar a viabilidade de um tratado de livre comércio com os Estados Unidos.

Vazquez também vem da esquerda, sua Frente Ampla é muito parecida com a coalizão formada em torno de Lula, antes da entrada dos partidos do mensalão. O Uruguai também pertence ao Mercosul, mas seu atual governo está achando que o bloco serve mais aos sócios grandes, Brasil e Argentina. Daí seu interesse em negociar acordos com os EUA e outros países.

O ponto interessante nessa história é que o chanceler brasileiro, Celso Amorim, já disse que o Uruguai deve deixar o Mercosul se assinar um tratado bilateral com os EUA. Nessa linha, o Mercosul ficaria com a Bolívia, já convidada, e sem o Uruguai, um fundador. De todo modo, supondo que o Uruguai abra as negociações com George Bush, haverá uma outra crise nesta região, mas vinda exatamente de lado contrário.

Pela Bolívia, o Brasil de Lula é alvo de uma nacionalização da qual a esquerda tradicional sempre gostou. Pelo Uruguai, a ameaça, digamos assim, é a expansão do chamado neoliberalismo e da influência dos EUA, coisa que Lula dizia combater quando ajudou a melar as negociações em torno da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

Eis onde o presidente brasileiro se meteu. Pretendendo ser o líder da América do Sul, primeiro, depois da América Latina e, finalmente, de todo o mundo emergente para falar ¿olho-no-olho¿ com os EUA, Lula acabou apanhado entre duas tendências.

De um lado, o nacional-populismo de Chávez impulsionado pela nacionalização dos investimentos dos gringos na Bolívia e o tratado com Cuba.

De outro, a linha muito bem representada por um ato recente de Vazquez, que foi a assinatura com os EUA de um tratado de proteção dos investimentos estrangeiros. Poderia ser mais claro?

Esta segunda linha poderia também ser chamada de chilena: mercado, garantia aos investimentos, segurança dos contratos e abertura comercial ao exterior. O Chile, que é sócio, não membro, do Mercosul, já tem acordos de livre comércio com EUA, México, Europa, China e Coréia do Sul. Segundo o presidente uruguaio, trata-se de um ¿país moderno e aberto a uma integração mundial¿, modelo que pretende seguir.

O governo uruguaio tem afirmado que, pela sua interpretação, tem todo o direito de assinar acordos comerciais com terceiros países, permanecendo como membro pleno do Mercosul. Se o governo brasileiro insistir na tese contrária ¿ ou Mercosul ou EUA ¿ e se o Uruguai iniciar as negociações em Washington, certamente será necessário convocar outra cúpula.

Participariam Vazquez, Lula e Kirchner, sem dúvida. Mas quem seria o convidado de fora? A presidente do Chile, Michelle Bachelet, ou ele, o próprio George Bush?

CARLOS ALBERTO SARDENBERG é jornalista. E-mail: sardenberg@cbn.com.br.