Título: PELO CD-ROM
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 18/05/2006, O País, p. 4

Pelas primeiras pesquisas de opinião, sobrou principalmente para o Judiciário a conta da falta de controle do Estado sobre os criminosos, mesmo tendo ficado claro que houve uma negociação do governo paulista com a ¿má vida¿, como simpática e anacronicamente chama a bandidagem o governador Cláudio Lembo, um austero advogado que carrega pela vida um ar cansado de papa-defunto que dá gravidade a qualquer frase que diga. Por isso soou mais insólito do que já era em si sua declaração de que não houve nada de errado na ação da polícia, e de que a situação estava sob controle.

A culpa pelos acontecimentos foi repartida igualmente pelos cidadãos entre o presidente Lula e o ex-governador Geraldo Alckmin, o que é melhor para o presidente, pois seu adversário direto tinha o controle da criminalidade no estado como uma das pérolas de sua gestão à frente do governo paulista. Mas é sintomático que o Poder Judiciário esteja sendo encarado pela população como o maior responsável pelo estado de calamidade pública que atingiu a questão da segurança em São Paulo.

A todo momento há exemplos de por que assim parece à sociedade, sem que seja preciso que se entre nos detalhes técnicos de por que as leis são assim ou assado. Nada mais exemplar da atual situação do que o desejo de Suzane Von Richthofen de permanecer em liberdade mesmo se for condenada no seu julgamento do próximo dia 5.

Ré confessa do assassinato dos pais, Suzane tem o desplante de exigir o mesmo tratamento que o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu ao jornalista Pimenta Neves, outro assassino confesso que ganhou o direito de permanecer livre até que todo o processo de recursos se encerre contra a condenação pelo júri popular de mais de 19 anos de detenção.

Uma interpretação benevolente da letra da lei deu a Pimenta Neves o direito de recorrer em liberdade até o trânsito em julgado de sua sentença, e Suzane também quer o mesmo tratamento. Também é sintomático que o Congresso tenha saído de sua inação de anos para aprovar uma série de medidas que já poderiam estar em vigor há muito tempo, entre elas considerar ¿falta grave¿ o uso de celular dentro da cadeia.

Escandalizou a decisão de um juiz que não considerou grave o líder da quadrilha que aterroriza São Paulo ter sido apanhado com um celular dentro da cadeia. O juiz, desta vez, ateve-se à letra fria da lei, em vez de interpretá-la. Fazendo isso, também beneficiou um bandido perigoso, ao contrário de um colega seu nos Estados Unidos, que adicionou mais 40 anos a um condenado apanhado com um desses aparelhinhos dentro de uma prisão. Apenas para servir de exemplo a outros presos, disse o juiz, usando com o bom senso do homem comum o espaço que a legislação americana lhe proporcionou.

Certamente não cheira bem para a população a resposta da advogada Iracema Vasciaveo, que atribuiu a uma coincidência o fato de as rebeliões terem sido encerradas como por encanto na noite de segunda-feira, depois que no domingo ela, com tratamento VIP assegurado pelo governo do estado de São Paulo, usou um avião oficial para ir até a cadeia de segurança máxima de Presidente Bernardes conversar com Marcola, o líder da quadrilha que, de dentro da prisão, comandava o terror nas ruas de São Paulo.

O mesmo Marcola que, através de outros advogados, comprara por módicos R$200,00 um CD-ROM com a gravação do depoimento secreto que, dias antes, deram na CPI do Tráfico de Armas os delegados paulistas Rui Ferraz e Godofredo Bittencourt. Ouvindo esse CD em sua cela, Marcola ficou sabendo com antecedência que ele e outros companheiros de quadrilha seriam transferidos para prisões de segurança máxima, e teve até mesmo a pachorra de repetir para os delegados frases inteiras que eles haviam dito no depoimento secreto, para deixar claro que escutara o depoimento.

Outros detentos também tomaram conhecimento dos depoimentos através de um sistema de escuta montado nos presídios. Uma sofisticação tecnológica que vai muito além do celular, e que mostra quão vulneráveis estamos diante da organização dessas quadrilhas. E quem vendeu o CD-ROM foi um funcionário terceirizado que trabalhava na CPI, da mesma maneira que disquetes e CD-ROMs com as contas no exterior, legais e ilegais, de milhares de pessoas foram vendidos nos camelôs em Brasília, fruto da CPI do Banestado. Quando não eram usados para achacar empresários.

Todos esses fatos são exemplares, um puxa o outro, para mostrar que o clima de desfaçatez que tomou conta da política brasileira não permite que sejamos otimistas em relação ao futuro combate ao crime organizado. Um Congresso que protege desavergonhadamente seus pares, criminosos confessos; um presidente da República que finge que nada sabe e nada viu, e ainda se dá ao desplante de ficar ditando regras como se não fosse o principal responsável pelo governo, inoperante tanto no setor educacional quanto no de repressão policial; um ex-governador que se apresenta como candidato alternativo à Presidência da República baseado em uma suposta excelência administrativa que desmorona poucos dias depois de ele sair do governo; e um governador de Estado que jura solenemente que não negocia com bandidos e manda um avião oficial levar uma advogada de porta de cadeia para conversar com os chefes da quadrilha.

Tudo isso aponta para a falência completa de nossas instituições, e até o momento não apareceu ninguém nem nenhum projeto, para justificar um otimismo com o futuro.

Em abril de 2003, escrevi uma coluna sobre os problemas políticos que impediam a implantação do Sistema Único de Segurança Pública que terminava, com pessimismo, assim: ¿Enquanto nossos políticos não se entendem, o Marcola, chefe do PCC, conversa pelo celular com o Fernandinho Beira-Mar¿.