Título: O PROBLEMA AMERICANO DO FMI
Autor: JOSEPH E. STIGLITZ
Fonte: O Globo, 19/05/2006, Opinião, p. 7

Aúltima reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI) foi saudada como um grande avanço, tendo seus dirigentes recebido um novo mandato para analisar os desequilíbrios comerciais que contribuem de forma significativa para a instabilidade global. A nova missão é de importância crucial, tanto para a saúde da economia mundial como para a própria legitimidade do FMI. Mas o Fundo está à altura da tarefa?

Obviamente, há algo de peculiar num sistema financeiro global em que o país mais rico, os Estados Unidos, toma empréstimos de mais de US$2 bilhões por dia de países mais pobres ¿ enquanto lhes passa sermões sobre boa administração e responsabilidade fiscal. De modo que muita coisa está em jogo para o FMI, que está encarregado de manter a estabilidade financeira global: se os outros países perderem confiança nos EUA, com seu endividamento crescente, pode haver imensas conturbações nos mercados financeiros mundiais.

O trabalho do FMI é árduo. Naturalmente, é importante para o Fundo focalizar desequilíbrios globais, não bilaterais. Num sistema comercial multilateral, grandes déficits bilaterais podem ser compensados por superávits bilaterais com outros países. A China pode querer petróleo do Oriente Médio, mas este, que tem tanta riqueza concentrada em tão poucas mãos, pode estar mais interessado em bolsas Gucci do que nos artigos chineses de massa. Assim, a China pode ter déficit com o Oriente Médio e superávit com os EUA, sem que isso revele coisa alguma sobre a contribuição global da China para os desequilíbrios globais.

Os EUA estão eufóricos com seu sucesso em expandir o papel do FMI, pensando que isso vai pôr pressão sobre a China. Mas é uma alegria míope. Em matéria de desequilíbrios comerciais multilaterais, os EUA estão cabeça e ombro acima de todos os outros. Em 2005, o déficit americano foi de US$805 bilhões, contra US$325 bilhões somados de Europa, Japão e China. Portanto, não se pode falar de desequilíbrios comerciais sem focalizar o maior desequilíbrio do planeta ¿ o produzido pelos EUA.

Diagnosticar desequilíbrios comerciais ¿ saber a quem culpar e o que fazer ¿ é questão econômica e política. Esses desequilíbrios resultam, por exemplo, de decisões internas sobre quanto poupar e quanto e o que consumir. Resultam também de decisões do governo: quanto tributar e gastar (o que determina o grau de poupança ou déficit públicos), regras sobre investimentos, políticas cambiais e assim por diante. São todas decisões interdependentes.

Por exemplo, os grande subsídios agrícolas dos EUA contribuem para seu déficit fiscal, que implica déficit comercial maior. Mas traz também conseqüências para a China e outros países em desenvolvimento. Se a China valorizasse sua moeda, seus agricultores seriam prejudicados; mas num mundo de comércio (mais) livre, os subsídios dos EUA levam a preços agrícolas globais mais baixos e, portanto, preços mais baixos para os agricultores chineses. Ao beneficiar seus agricultores ricos, os EUA podem não ter tido a intenção de prejudicar os pobres do mundo, mas este é o resultado previsível.

A China fica num dilema. Subsidiar seus agricultores tiraria dinheiro de educação, saúde e projetos urgentes de desenvolvimento. Pode tentar manter uma taxa de câmbio ligeiramente mais baixa do que deveria, e nesse caso, se o FMI for justo, deve criticar a política agrícola dos EUA ou a política cambial da China? Além do mais, uma mudança na taxa de câmbio chinesa de pouco serviria para alterar o déficit comercial dos EUA. Os americanos podem simplesmente deixar de comprar têxteis chineses para fazer importações de Bangladesh. É difícil ver como uma mudança na política cambial chinesa teria efeito significativo sobre poupança ou investimentos nos EUA ¿ e, portanto, como reduziria os desequilíbrios globais.

Como o déficit comercial dos EUA é o maior desequilíbrio global, é preciso buscar um aumento da poupança nacional do país ¿ problema com que os governos americanos têm enfrentado há décadas, e que era freqüentemente discutido quanto eu chefiava o Conselho de Assessores Econômicos do presidente Clinton. Embora seja verdade que remuneração maior possa aumentar um pouco a poupança privada, a perda de receita seria maior do que o ganho, portanto, em última análise, reduzindo a poupança nacional. Só encontramos uma solução: reduzir o déficit fiscal.

Em resumo, os EUA têm responsabilidade tanto pelos desequilíbrios comerciais como pelas políticas que poderiam ser adotadas rapidamente para corrigi-los. A reação do FMI à sua nova missão de aferir os desequilíbrios globais testará assim sua combalida legitimidade política. O Fundo não conseguiu escolher os chefes na base do mérito, sem levar em conta nacionalidade, e não pôde assegurar bases mais legítimas para o direito de voto. Muitos dos países em desenvolvimento, por exemplo, ainda estão sub-representados.

Se a análise dos desequilíbrios globais pelo FMI não for equilibrada, se não identificar os EUA como grande culpado, e não chamar atenção para a necessidade de que os déficits fiscais americanos sejam reduzidos ¿ por meio de impostos mais altos para os mais ricos e gastos menores em defesa ¿ a relevância do Fundo no século XXI inevitavelmente declinará.

JOSEPH E. STIGLITZ é economista. © Project Syndicate.