Título: A HIPOCRISIA COMERCIAL DOS EUA
Autor: JOSEPH E. STIGLITZ e HAMID RASHID
Fonte: O Globo, 09/07/2006, Opinião, p. 7

Àmedida que a ¿rodada de desenvolvimento¿ das conversações comerciais caminha para suas últimas etapas, fica cada vez mais claro que não se avançará em direção à meta de promover o desenvolvimento, e que o sistema de comércio multilateral sairá prejudicado. Isso fica especialmente claro na norma que supostamente dará aos países menos desenvolvidos acesso quase livre de tarifas aos mercados dos países desenvolvidos.

Há um ano, os líderes das nações mais ricas se comprometeram a aliviar os males das mais pobres. Em Doha, em novembro de 2001, tinham prometido dar algo mais valioso do que dinheiro: oportunidade aos países pobres para vender seus bens e com isso começar a sair da pobreza. Com grande alarde, os países desenvolvidos pareciam estar cumprindo suas promessas, quando a Europa ampliou sua iniciativa ¿Tudo menos armas¿ (TMA), pela qual abriria unilateralmente seus mercados aos países mais pobres do mundo.

A abertura foi menor do que parecia. O diabo está nos detalhes: como muitos países menos desenvolvidos descobriram, as complicadas regras de origem do TMA, juntamente com restrições ligadas à política do supply-side, significaram que os países pobres teriam pouca chance de exportar os produtos recém-liberalizados.

Mas o golpe de misericórdia foi aplicado pelo país mais rico, os Estados Unidos, que novamente decidiram dar mostras de sua hipocrisia. Concordaram ostensivamente em abrir 97% de seu mercado para os mais pobres. Os países em desenvolvimento estavam desapontados com a iniciativa TMA da Europa, e esta reagiu comprometendo-se a enfrentar pelo menos parte do problema que resultava das regras sobre testes de origem. Já a intenção dos EUA era apenas a de dar a impressão de estar abrindo seu mercado, pois a regra permitia que cada país tivesse direito a 3% diferentes. O resultado foi o que ironicamente veio a ser chamado de iniciativa TMP: os países em desenvolvimento podem exportar tudo menos o que produzem. Podem vender motores de avião a jato, supercomputadores, aviões, chips de todos os tipos ¿ mas não têxteis, produtos agrícolas ou alimentos processados, os artigos que são capazes de produzir e produzem.

Consideremos Bangladesh. Levando em conta as linhas tarifárias de seis algarismos mais usadas, Bangladesh exportou 409 linhas para os EUA em 2004, com uma receita de US$2,3 bilhões. Mas suas 12 principais linhas ¿ 3% do total ¿ responderam por 59,7% das exportações totais para os EUA. Isso significa que os americanos podem levantar barreiras a quase três quintos das exportações de Bangladesh. No caso do Camboja, são cerca de 62%.

A situação não é melhor se a regra dos 3% se aplica às linhas importadas pelos EUA do resto do mundo (em vez das linhas individuais exportadas pelos países pobres para os EUA), pois nesse caso os EUA podem excluir cerca de 300 linhas tarifárias do tratamento livre de tributos e livre de cotas. Para Bangladesh, isso implica que 75% das linhas tarifárias, que respondem por mais de 90% do valor de suas vendas para os EUA, podem ficar fora do tratamento livre de tarifas. Essa exclusão pode chegar a 100% para o Camboja, que só exportou 277 linhas tarifárias para os EUA em 2004.

O argumento oficial para a exclusão dos 3% é de que ela afeta ¿produtos sensíveis¿. Ou seja: os EUA passam sermões nos países em desenvolvimento sobre a necessidade de enfrentar o custo de um ajuste rápido à liberalização, mas se recusam a fazer o mesmo (na verdade, tiveram mais de 11 anos para se ajustar à liberalização dos têxteis). Mas o problema real é muito pior, porque a exclusão dos 3% ergue o espectro de uma política odiosa de dividir e conquistar, já que os países em desenvolvimento são incitados a disputar entre si para assegurar que os EUA não excluam seus produtos vitais da regra dos 3%. Essa exclusão simplesmente solapa o sistema de comércio multilateral.

Pode haver mesmo um propósito oculto por trás da proposta dos 97%. Na reunião da Organização Mundial de Comércio em Cancún, em 2003, os países em desenvolvimento se uniram e bloquearam esforços para impor um acordo comercial que era quase tão injusto quanto a rodada do Uruguai prévia, que já tinha agravado a situação dos mais pobres. Era imperativo destruir essa unidade. A estratégia americana de acordos comerciais bilaterais tinha precisamente esse objetivo, mas abrangia poucos países, que representam uma fração do comércio mundial. A fórmula dos 97% abre a possibilidade de estender essa fragmentação para dentro da própria OMC.

Os EUA já tiveram algum sucesso em jogar os pobres uns contra os outros. O acesso preferencial aos países africanos, dentro do Ato de Crescimento e Oportunidade da África (Acof) e iniciativas mais recentes, parece ser basicamente uma estratégia diversionista ¿ tirar o comércio de alguns países pobres e dá-lo a outros. Por exemplo, a participação de Bangladesh no mercado do vestuário dos EUA caiu de 4,6% em 2001 para 3,9% em 2004. No mesmo período, a fatia de mercado dos países do Acof no setor de roupas dos EUA aumentou de 1,6% para 2,6%, e tende a aumentar mais quando essas nações começarem a tirar amplo proveito do acesso livre de tarifas.

O Acof tinha uma cláusula de prescrição, mas se o acesso livre de tarifas se tornar permanente para os países menos desenvolvidos da África ¿ conforme estipulado em Hong Kong ¿ então os países pobres da Ásia continuarão a perder mercado nos EUA. A OMC deveria impedir esses acordos diversionistas, mas até agora não resolveu um só caso.

Mesmo que os EUA consigam dividir os países em desenvolvimento, entretanto, poderão inspirar um certo grau de unidade em outras partes. Tanto quem defende a liberalização do comércio dentro de um sistema multilateral quando os que lutam pela ajuda aos países em desenvolvimento verão com repulsa a nova estratégia americana.

JOSEPH E. STIGLITZ é economista. HAMID RASHID é diretor do Ministério do Exterior de Bangladesh. © Project Syndicate.