Título: À ESPERA DA REPARAÇÃO
Autor: Prscilla Guilayn
Fonte: O Globo, 27/08/2006, O Mundo, p. 44

Vítimas da ditadura de Franco na Espanha se decepcionam com proposta do governo socialista

Era dia 17 de julho de 1936. Estourou a Guerra Civil Espanhola. Gervasio Puerta era um menino de 14 anos que decidiu defender a República e a democracia. Seu pai, que lutava em Madri, autorizou o filho a falsificar sua idade e combater os chamados ¿nacionais¿, liderados pelo general Francisco Franco. A guerra acabou três anos depois, mas a luta de Gervasio continua até hoje, aos 85 anos. Junto com outros ex-presos e parentes de combatentes republicanos, ele espera ver reconhecidos seus direitos sociais e políticos. A esperança crescera com a discussão dentro do Gabinete do governo socialista de José Luis Zapatero de um projeto de lei para amparar as vítimas do franquismo. Mas a insatisfação é geral.

No fim do julho, foi enviado para o Congresso dos Deputados um projeto de lei que frustrou as vítimas de Franco. As compensações financeiras são mínimas; o governo não oferece ajuda para a localização, a exumação e os testes de DNA de cadáveres em valas comuns; a retirada de símbolos franquistas de prédios públicos é apenas uma recomendação, não uma determinação; e até mesmo o corpo de Franco é mantido no monumento nacional do Vale dos Caídos.

A ditadura de Franco não parou de derramar sangue até sua morte, em 1975. Gervasio, durante esse período, lutou contra os nazistas na Resistência Francesa, esteve confinado em campos de concentração, voltou à Espanha clandestinamente, foi preso duas vezes e torturado. A morte de Franco virou a página de quatro décadas de autoritarismo, que boa parte da população atual não vivenciou. De fato, um em cada três espanhóis ainda não tinha nascido em 20 de novembro de 1975, quando morreu o ditador. Desde então, a Associação de Ex-presos Antifranquistas, da qual Gervasio é presidente, e uma dezena de outras organizações trabalham sem descanso para recuperar a memória dessa época.

Este projeto de lei, que ainda precisa do crivo do Parlamento ¿ onde não receberá o apoio do conservador Partido Popular (que alega que o passado está superado) ¿ poderia ser a chance de ajudar a fechar feridas.

¿ Odeio as guerras com todas as forças. A guerra e o pós-guerra significam para mim um trauma e uma luta constante contra essas lembranças. Mas este trauma não me tirou a vontade de viver e de trabalhar para alcançar nossos objetivos ¿ disse Gervasio, com voz trêmula, mas firme. ¿ Desejamos que este projeto de lei seja modificado no Parlamento. A história não pode ser escrita pela metade.

`O meu pai não era um rebelde¿

Embora o apóiem, os afetados pelo franquismo acham o projeto de lei insuficiente. O governo descartou propositalmente as palavras ¿memória¿ e ¿história¿ de seu nome oficial.

¿ O governo não escreve a História. Isso é trabalho de historiadores ¿ argumentou a vice-presidente do governo, María Teresa de la Vega.

Mas a decisão não agradou.

¿ Fiquei estupefato. Esta lei põe franquistas e republicanos num mesmo saco. É uma indignidade ¿ opinou José María Rojas, membro da Associação para a Recuperação da Memória Histórica, que trabalha na localização dos cadáveres de pelo menos 630 fuzilados ao sul de Burgos.

O texto do projeto diz que seu objetivo é a ¿reparação moral e a recuperação da memória pessoal e familiar, e que proclame a injustiça das penas e sanções e qualquer forma de violência produzida por razões políticas ou ideológicas durante a Guerra Civil e a ditadura, qualquer que fosse o lado.¿

¿ Não há reparação moral. Meu pai continuará sendo considerado rebelde porque a lei não anula os Conselhos de Guerra. Ele lutou contra um governo ilegalmente constituído. Rebeldes eram os outros. Meus descendentes que fizerem uma pesquisa histórica se depararão com um tataravô rebelde ¿ diz Joaquín Rodero, representante da Associação Manuel Azaña (presidente da República durante a Guerra Civil).

O projeto de lei prevê a emissão de uma ¿declaração pessoal de reconhecimento¿ para os que a solicitem.

¿ Não quero um diploma para pendurar na parede. Quero que conste que meu pai não era um rebelde. É fundamental que se anulem os sumários Conselhos de Guerra ¿ diz Rodero.

Outro artigo do projeto que está causando polêmica é sobre o Vale dos Caídos, o monumento construído sob ordens de Franco, onde ele está e permanecerá enterrado. Muitos dos chamados ¿escravos do franquismo¿, presos políticos que para reduzir as penas trabalhavam em obras públicas, morreram na construção deste lugar.

¿ Não pode-se permitir que um torturador assassino esteja repousando no Vale dos Caídos, que deveria ser um símbolo antifranquista ¿ opinou Gervasio Puerta. ¿ Concordo que este monumento sirva à história, mas que seja uma história verdadeira: que conste como, por quem, a mando de quem, e sob que condições foi construído, e de que maneira muitos presos ali morreram.