Título: GARANTIAS PARA A DEMOCRACIA
Autor: CARMEN FONTENELLE
Fonte: O Globo, 07/09/2006, Opinião, p. 7

Nos tempos de crise moral em que vivemos, cabem algumas considerações sobre o papel ético do advogado. Para tal, voltemos à fundação da Ordem dos Advogados do Brasil, em 18 de novembro de 1930, e regulamentada por decreto, no ano seguinte, pelo então chefe do governo provisório, Getúlio Vargas. Francisco Gê Acaiaba de Montezuma ¿ primeiro presidente do IAB, entidade precursora da OAB ¿ já dizia em 1843 que, ¿nos países mais civilizados, os advogados constituem uma ordem independente¿.

Nascida há 76 anos como farol democrático dentro de um governo discricionário, a instituição ainda hoje se mantém firme nas trincheiras em defesa do estado democrático de direito. Sempre que ameaçada a cidadania, a Ordem usou de sua força moral e falou em nome da sociedade.

Ruy Barbosa, em sua clássica ¿Oração aos moços¿, afirmou que ¿legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejá-la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. (...) Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura¿.

Hoje vemos com apreensão casos de patronos de criminosos utilizando-se de prerrogativas necessárias à liberdade do advogado para envolver-se nos crimes de seus clientes. Não são advogados criminosos, mas criminosos disfarçados de advogados. Há que se apoiar investigação e punição dos envolvidos, mas também é preciso repudiar as tentativas de usurpação das prerrogativas da classe. Gravação de conversas entre clientes e advogados, invasão de escritórios em busca de provas, são recentes e lastimáveis exemplos desta prática.

Paulo Luiz Netto Lobo, em seus comentários ao Estatuto da Advocacia, tratando da inviolabilidade profissional, observa que ¿o Estado ou os particulares não podem violar essa imunidade profissional do advogado porque estariam atingindo os direitos da personalidade dos clientes, e, a fortiori, a cidadania. O sigilo profissional não é patrimônio apenas dos advogados, mas uma conquista dos povos civilizados¿.

Acreditamos que os conceitos de ética e prerrogativa estão intimamente ligados. Para assegurar suas prerrogativas, o advogado deve ter uma postura condizente com sua profissão, e a Ordem vem se mantendo atenta a isso. Através de seu Tribunal de Ética, a OAB/RJ tem punido com severidade os que são comprovadamente culpados em desvios de conduta. Felizmente, a grande maioria dos cerca de 110 mil profissionais inscritos na Seccional do Rio age corretamente e dignifica a profissão.

Somente na administração do presidente Octavio Gomes, 95 advogados foram excluídos dos quadros da entidade, 3.093 foram suspensos e 1.087 tiveram pena de censura ou advertência. Por outro lado, é com a mesma intensidade que a OAB/RJ defende a prerrogativa dos advogados. Para constatá-lo, basta analisar as inúmeras representações dirigidas contra magistrados que descumprem os direitos do livre exercício da advocacia.

Não se pode confundir prerrogativas do advogado, na verdade prerrogativas democráticas da defesa da sociedade em busca de justiça, com privilégios inerentes ao exercício de algumas funções públicas. Cabe recordar que, durante os ¿anos de chumbo¿, se não fossem essas prerrogativas, muitos presos políticos não teriam escapado do encarceramento e das torturas. Graças a inúmeros e valorosos advogados foi possível livrar homens e mulheres de condenações injustas, próprias a um período de suspensão das garantias democráticas. Esses abnegados profissionais jamais poderiam salvar tantas vidas se não fosse a garantia de suas prerrogativas.

Nas lições de Calamandrei, lembremos que as qualidades dos advogados ¿são a paixão da generosa luta pelo justo, a rebelião contra toda prepotência e a tendência, inversa à dos juízes, de amolecer sob a chama do sentimento o duro metal das leis, para melhor moldá-las à viva realidade humana¿. Sem a garantia de suas prerrogativas, perdem-se os instrumentos essenciais para se assegurar a justiça. E, como diz o lema da Ordem: sem advogado, não há justiça; sem justiça, não há democracia.

CARMEN FONTENELLE é vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil/RJ.